quinta-feira, 12 de maio de 2011

Identificação Perfeita

A identificação perfeita é quando te tornas uma frase num livro, um verso num poema, como aquela coisa que Pavese diz não sei onde «irei pelas ruas até cair morta de cansaço/ saberei viver sozinha e reter nos olhos/ cada rosto que passa e continuar a ser a mesma/ esta frescura que sobe e me busca as veias é um despertar/ que em manhã nenhuma sentira tão verdadeiro:/ sinto-me mais forte do que o meu corpo/ e um arrepio mais frio acompanha amanhã» (e quero lá saber se isto ficou bem citado), a identificação perfeita podia ser um termo de teoria literária (eu sou parecida/o com o livro x ou y, somos cordialmente muito semelhantes, estamos ligados, isto foi megalomanamente escrito para mim), a identificação perfeita é o que nos salva de nos devorarmos uns aos outros e é o que explica a utilidade da poesia (porque, hélas, já nada se pode dar ao luxo de ser desinteressadamente inútil, chegámos ao tempo em que nada te pode prender o coração se não servir para alguma coisa, em que não nos daremos a nada sem que isso sirva para alguma coisa, acho que já faltou mais para isso também, contra o verso de Ferlinghetti não arriscaremos o encanto). A identificação perfeita é uma coisa ética, o que significa que é uma coisa chata (sempre achei os contos morais chatos não por serem morais mas por serem enfadonhamente previsíveis). A identificação perfeita nem sempre desperta a nossa simpatia. A identificação perfeita às vezes não é uma cena bué da intensa dude que depois te sirva para escreveres um poema ou um post de blogue (embora às vezes também sirva para isso). A identificação perfeita por vezes há-de fazer-te triste (Heitor está morto, Andrei também), profundamente triste, oh sorrow sorrow sorrow, «sou como a águia que vê agora que a seta que a trespassa/ traz uma pena da sua própria asa», escreveu Ésquilo sobre Aquiles, que setas nos trespassaram que não tenham trazido com elas uma pena da nossa própria asa? A identificação perfeita requer estudo e ler muito e dá menos trabalho morrer profundamente estúpido (é também mais produtivo do ponto de vista do empírico), do ponto de vista da vida é também mais económico. A identificação profunda (mais perfeita que a perfeita) muitas vezes vai dar-te vontade de bater com a cabeça nas paredes de tristeza e depois far-te-á sentir profundamente vazio. Ninguém está para isso. Mais vale parecer muito intenso e não sê-lo (eu termino as tuas frases, parecerá que estamos na mesma onda). A verdade é que ninguém é muito intenso vinte e quatro horas por dia, a verdade é que quando te sentes uma merda no final do dia e vestes o teu pijama aos elefantes e aos corações e te deitas na caminha e tapas a cabeça com a almofada e choras baixinho completamente batido pela auto-comiseração a única coisa que te salva é se tiveres esperança em alguma coisa boa. E a esperança é uma forma de literatura porque a literatura é uma maneira acabada de sonho, memória para o futuro. A literatura às vezes não está nos livros. Estaremos muito sós para sempre e muito vazios se com nada ou com ninguém encontrarmos uma identificação perfeita. A vida é o mais literário dos géneros. Este texto é tonto, ligeiramente histérico e não está devidamente fundamentado mas eu também.

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