quinta-feira, 12 de maio de 2011

Sem nome #1

A sua primeira vítima foi o tirano, o inimigo — é crime, mas compreende-se, havia um motivo; mas depois já mata quem não é inimigo, o primeiro que lhe aparece à frente, mata por gozo, por uma palavra mais bruta, por um olhar, ou, simplesmente: «Sai da frente, não te ponhas no meu caminho, vou passar!» Parece embriagado, em delírio febril. Como se, ao ultrapassar o limite proibido, começasse a deliciar-se por já ter deixado de existir para ele algo de sagrado; como se fosse empurrado a passar de um salto por cima de qualquer legalidade, de qualquer autoridade, a deleitar-se com a mais desenfreada e ilimitada liberdade, a deleitar-se com o esmorecer do coração aterrorizado do outro, e é impossível que não sinta terror de si mesmo. Além disso, sabe que tem pela frente um castigo terrível. Talvez tudo isso se assemelhe à sensação que tem um homem no cimo de uma torre alta, atraído pelo abismo debaixo dos seus pés, a ponto de estar pronto a atirar-se de cabeça; fazê-lo já, acabar com tudo! E todas estas coisas acontecem às mais apagadas e submissas pessoas. Algumas, no meio de tal embriaguês, até se exibem. Quanto mais a pessoa fora humilhada antes, mais é levada agora a espevitar-se, a meter medo. Delicia-se com o medo que provoca, gosta até da repugnância que causa aos outros. Faz-se arrojado , mas é um «arrojado» que por vezes anseia o castigo, quer ser condenado, porque se lhe torna penoso carregar com tal arrojo fingido. É curioso que, na maior parte dos casos, todo este estado de ânimo, todo este fingimento, dura apenas até ao cadafalso, depois desaparece de todo: como se fosse um qualquer período formal, imposto antecipadamente por determinadas regras. Então, de repente, o indivíduo resigna-se, esbate-se, torna-se um trapo. No cadafalso, lamuria-se — pede perdão ao povo. Vai parar à prisão: é um ranhoso, um embrutecido — até nos admiramos: «Então aquilo é que matou cinco ou seis pessoas?»


Fiódor Dostoiévski, Cadernos da Casa Morta, Editorial Presença, Lisboa, 2003, tradução Nina Guerra e Filipe Guerra.

Post originalmente publicado por AJTR

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