domingo, 15 de maio de 2011

O melhor livro é aquele que te faz parar a meio da frase

O versículo inteiro [III,7 do Alcorão] afirma: "Foi Ele quem fez descer sobre ti o Livro. Nele se encontram versículos unívocos que são a Mãe do Livro, e outros que são ambíguos. As pessoas em cujos corações [se encontra] o erro seguem o que é ambíguo, pois desejam a discórdia e a interpretação [metafórica], e ninguém conhece a sua interpretação [metafórica] senão Deus e os homens imbuídos de saber dizem acreditamos Nele, tudo vem do nosso Senhor, mas apenas os homens dotados de inteligência se lembram disso." Este versículo tem duas interpretações diametralmente opostas. Se a pausa é feita após "Deus", não se deve interpretar metaforicamente o Alcorão. Mas se a pausa é feita após "os homens imbuídos de saber", como faz Averróis, a interpretação metafórica é possível para certo tipo de pessoas. Esta leitura deste versículo é muito anterior a Averróis.

nota #27 de Averróis, Discurso Decisivo Sobre a Harmonia entre a Religião e a Filosofia. Catarina Belo (trad.) INCM: 2006



Foi Ele quem fez descer sobre ti o Livro. Nele se encontram versículos unívocos que são a Mãe do Livro, e outros que são ambíguos. As pessoas em cujos corações se encontra o erro seguem o que é ambíguo, pois desejam a discórdia e a interpretação, e ninguém conhece a sua interpretação senão Deus e os homens imbuídos de saber. Eles dizem: acreditamos Nele, tudo vem do nosso Senhor, mas apenas os homens dotados de inteligência se lembram disso. ALCORÃO 3.7

Foi Ele quem fez descer sobre ti o Livro. Nele se encontram versículos unívocos que são a Mãe do Livro, e outros que são ambíguos. As pessoas em cujos corações se encontra o erro seguem o que é ambíguo, pois desejam a discórdia e a interpretação, e ninguém conhece a sua interpretação senão Deus. E os homens imbuídos de saber dizem: acreditamos Nele, tudo vem do nosso Senhor, mas apenas os homens dotados de inteligência se lembram disso. ALCORÃO 3.7

3 comentários:

  1. (tinha feito um comentário grande que se perdeu, vou resumir)

    Para completar a nota da Catarina Belo, acrescento algumas ideias que talvez esclareçam um pouco mais a questão.

    Para um muçulmano, em rigor o Alcorão (al-qur'ân) é apenas o conteúdo, a recitação (é esse o significado da palavra). O objecto físico é um "mus-haf" (simplifico a transcição). Mais, Alcorão é apenas a versão árabe, que acreditam ser ipsis verbis o que Deus ditou a Maomé. Do ponto de vista teológico, não existem traduções do Alcorão, apenas "versões do seu sentido".

    As edições do Alcorão, mesmo as modernas, não usam qualquer pontuação, apenas separam as palavras - embora nem sempre de forma muito clara graficamente.

    Assim, a leitura é sempre exegética e nem sempre fácil (já sem contar com o facto de que ninguém fala aquele árabe, que é essencialmente o árabe padrão moderno, como língua materna).

    No entanto, normalmente as edições em árabe assinalam as pausas obrigatórias, as pausas opcionais, os alongamentos, etc. com símbolos convencionais específicos para o efeito. Há até umas edições fantásticas com letras a várias cores, para assinalar todas as variáveis da recitação "tajwîd".

    Tenho duas belíssimas edições dessas, só em árabe. Fui verificar o passo citado, e numa delas (vinda da Síria) tem um sinal que não consigo encontrar nos elencos de sinais "tajwîd", mas que penso ser uma pausa opcional. Outra edição que me trouxeram de Marrocos tem um sinal de pausa obrigatória a seguir a "ilâ Allâh" (senão Deus), o que em árabe corrente seria um ponto final. Também é assim que interpretam todas as edições bilingues que tenho (ar-ing ar-fr ar-es), que colocam um ponto final a seguir a "Deus".

    Por fim, isto não é nenhuma esquisitice muçulmana. As boas edições críticas (de referência) da Vulgata e da Septuaginta que aqui tenho em casa também editam o texto sem qualquer pontuação, como era prática no mundo antigo. O árabe era assim também, e só modernamente adoptou um sistema de pontuação, copiado do nosso, apenas invertendo a posição. Mas nos textos religiosos antigos retomam a prática de não usar pontuação.

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  2. Suponho que seja então como nos textos clássicos, onde a pontuação não existe enquanto pontuação, o que não quer dizer que não exista de outros modos (ordem das palavras etc): mais, nas versões hebraicas acresce o problema dos masoréticos (o que creio seja semelhante no Árabe), e nas gregas o dos diacríticos: a Stuttgardensia (a edição de referência para a Tanakh) não os tem, nem o fazem outras edições críticas em relação ao grego. Uma pergunta, porém, de índole mais “teológica”, que pode dar porém uma resposta alternativa a tudo isto: sobre o Alcorão enquanto ditado de Deus, como é que se conciliar o facto de ser ipsis verbis o que Deus disse e ser “apenas a versão árabe”? Se foi o que Deus disse, então aparentaria que fosse a língua definitiva para qualquer exegese, e que quaisquer problemas de interpretação pudessem ser relegados para as falhas inerentes à linguagem humana; se pelo contrário Deus falar árabe então a versão árabe ganha influência inegável: esta é mais ou menos a ideia judaica da Torah, e é o ponto de partida para a assunção do hebraico como língua santa.

    Permite-me apenas transcrever-te o texto em que está inserido a nota, para teres todo o contexto.

    28. Dito isto, torna-se claro que não é possível estabelecer consenso em questões desta natureza [está a falar da polémica entre Alfarabi e Alghazzali sobre dogmas religiosos], de acordo com o que se afirmou sobre muitos dos antigos [veneráveis] crentes [muçulmanos] (_al-salaf_), para não falar de outros (mais recentes); ou seja, (defenderam) que há interpretações que só devem ser divulgadas a quem conhece a [ciência da] interepretação, ou seja, “os homens imbuídos de conhecimento”, porque optamos por fazer uma pausa após as palavras de Deus —excelso— “os homens imbuídos de conhecimento”. (nota aqui).

    Acrescento-te ainda o fim da nota, que não transcrevi por inteiro:
    (…) Esta leitura deste versículo é muito anterior a Averróis. Segundo Geoffroy, “cette lecture, l’une des deux attestées depuis les origines de la tradition exégétique musulmane, offre à Ibn Rushd [Averróis] une confirmation scripturaire de sa thèse selon laquelle une certaine classe d’hommes, celle des ‘hommes d’une science profonde’ (identifiés aux hommes de démonstration), peut et doit intégrer l’exigence rationnelle à sa compréhension de la Révélation en usant du _ta’wil_ [interpretação metafórica]. Ce verset sert d’ailleurs d’argument à tous les non-littéralistes, théologiens, mystiques, pour affirmer l’existence de divers niveaux de signification dans le Texte révélé […] L’autre lecture donne au verset un sens totalement opposé […] C’est la lecture retenue en général par les traditionalistes pour justifier à l’inverse leur attitude fidéiste. » (_Averroès. Discours décisif_, p.193 n.57.)

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  3. O muçulmano acredita que o Alcorão foi ditado em árabe, sob a forma que conhecemos hoje (não há uma tradição de edições críticas, o texto é considerado definitivo). As evidências, que apelam apenas à fé, como é natural, prendem-se em primeiro lugar com o facto de que Maomé era analfabeto, e portanto não poderia ter concebido um texto tão complexo gramaticalmente, e ainda com a própria qualidade estética, considerada demasiado perfeita para ter saído da mão de um homem.

    A veneração do texto é tal que não se explica nem se procura explicar a ocorrência de sequências de letras sem sentido aparente. Por exemplo, algumas suras começam com a sequência alif-lam-mîm (alm), que é recitada assim mesmo, soletrando.

    Também por causa disto, o árabe moderno padrão é basicamente o mesmo do Alcorão, sem quaisquer alterações morfológicas, praticamente sem alterações fonéticas, e apenas com algumas simplificações sintáticas e alguns neologismos. Claro que ninguém o fala como língua materna, e só por razões políticas se diz que é a língua oficial de Marrocos ou Iraque: na verdade só é usado em contextos religiosos, na telefisão e rádio, e em alguns contextos formais.

    Quanto aos diacríticos, são de regra no Alcorão e textos religiosos em geral. Tanto quanto sei, são de uso obrigatória nessas circunstâncias desde que foram criados, lá pelo século VIII. Pelo menos vejo-os em qualquer manuscrito medieval do Alcorão.

    A coisa chega ao ponto de em algumas edições modernas dos "Ditos do Profeta" só as falas de Maomé viram com diacríticos. Os "Ditos" são recolhas de frases atribuídas a Maomé, e são uma das fontes da teologia e do direito islâmico, juntamente com o Alcorão. Têm uma estrutura curiosa, do tipo "X disse que ouviu Y que ouviu Z que ouviu K dizer que ouviu o Profeta dizer que ..." Quanto maior for a sequência de "diz que ouviu", maior a autoridade do Dito. Embora as grandes edições tenham diacríticos no texto todo, tenho algumas edições com selecções de Ditos que apenas colocam diacríticos na fala de Maomé, e omitem na sequência.

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