segunda-feira, 30 de maio de 2011

manuscritos de outono

Título roubado a Tasos Leivaditis,
o poeta que falava da odisseia que vive cada poeta ao
escrever o mais pequeno poema e cuja definição
de vida era instante luminoso.



I

nunca aprenderá os princípios da arte por impaciência
(não por surdez) espera que te vás aproximando
até à proximidade evidente até que te escute
subir na própria voz como uma cadência
o copiar de um velho hábito que te visitasse
como um remorso trabalha num espaço
de teia em desassossego espécie de loja
de penhores de um corrector de apostas
demasiado desorganizado e pouco ganancioso
mas cederá a pouco e pouco pequenos objectos
de valor simbólico que não importa aqui enumerar

II

bebemos o nosso café em copos de papel
temos nos bolsos luas de papel barcos de papel
se no princípio era o rio talvez eu te apanhasse
na curva da voz mas nunca ouvi dizer que a
comunicação no nosso século se fizesse via
barcos de papel seremos breves e silenciosos
como conspiradores falaremos baixo semi-
cerrando os olhos o argumento desperdiçado

o que concedes como no verso de pavese é um velho
remorso e também nós desceremos ao remoinho mudos

III

estamos condenados a imaginar essas antecâmaras
as suas horas de vigílias as suas esperas o daimon
que habita o intervalo entre o pensamento e o acto
podíamos ter sido como na grécia antiga poetas
a soldo ao serviço de algum déspota mais modesto
mas seria uma vida triste de que nos cansaríamos
depressa afinal não tanto ao contrário de píndaro

IV

um pouco absortos diante da banca de tabaco
e jornais até que te escute subir na própria voz
como quem subisse por uma escada que
desembocasse num pátio onde batesse o sol
e vista de longe a tua sombra passasse na parede
branca reflectida um instante submersa na distracção
do tempo que faz das circunstâncias mais alegoria
de si mesmas do que de qualquer outra caverna

V

ainda que muitas vezes te tome o desejo
de reclusão persianas corridas luzes apagadas
portas fechadas o livro no colo meu pobre
escriba os óculos presos por corrente ao peito
o murmúrio em penumbra de blues como
a impressão concreta definitiva de submergir
num modo de surdez que outra coisa não é
que uma calma duramente aprendida aquela
que não pode vir de uma imobilidade indolente

VI

uma coisa duramente aprendida essa
de nos manietarmos quando queríamos
gritar de taparmos a boca com a mão
de cerrarmos dolorosamente os olhos as mãos
de raiva e despeito tu caminharás
arduamente por esse corredor eu hei-de
carregar comigo o teu grito como aqueles
atletas da grécia a tocha de olímpia e não
me importa se não chegarmos a lado nenhum
se a memória de ti se perder se todas as tuas
palavras pássaros de fumo no vento não
importará porque eu ouvi-te desse lado do
espelho e o teu eco dolorosa pegada
durando contra o rumor de sinos de outono no ar

Tatiana Faia

2 comentários:

  1. « (...) temos nos bolsos luas de papel barcos de papel se no princípio era o rio talvez eu te apanhasse na curva da voz mas nunca ouvi dizer que a comunicação no nosso século se fizesse via
    barcos de papel seremos breves e silenciosos
    como conspiradores (...) » ( Que bonito !!! )

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  2. Um grave sankiu for the feedback, S.T.

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