segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

«A Barreira Invisível» - Terrence Malick (1998)

1.
O último graduado a saber de cor
passagens inteiras da Ilíada foi o valente
soldado Ernst, em mil novecentos
e dezassete. Mas esse era um romântico
alemão, caçador de besouros.

Nós, em Guadalcanal, anos depois,
o que tínhamos era sobretudo medo de cair
em desgraça perante o nosso deus,
que não era Marte nem Apolo mas um homem
que se ria de tudo isso: a cólera, o brio,
o ethos violento dos cabreiros de Rodes,
de Tróia, do Peloponeso.

Ria-se a figura do nosso deus, do nosso lar,
entre lágrimas de barro, mas eu não o ouvia,
nem tu. Pois havia que matar, ainda que
sem fé; havia que morrer, mesmo sem
perdão. Entre todos, perfazíamos centenas
de sintomas isolados. Cada um agarrava-se
àquilo que tinha: a barra do beliche,
um punhado de cartas, o pano ainda virgem
do idealismo, a crista humedecida dos joelhos.

2.
É difícil caminhar sobre uma linha invisível,
uma linha de água, entre o mal e o mal. Dividido
pelo sangue que atravessa os pensamentos, do inferno
ao paraíso, com o chumbo atravessado na memória,
os bolsos pesarosos de letais pressentimentos,
caminha sobre as águas quem caminha sobre si.
Por isso é tão difícil caminhar sobre as águas.

José Miguel Silva, Movimentos no Escuro, Relógio d'Água, 2005

2 comentários:

  1. Talvez seja oportuno dizer que à conta destas recentes partilhas ganhaste para este livro um leitor.

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  2. Ora, esse é o objectivo de partilhar poemas :D Vale muito a pena este.

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