quinta-feira, 8 de setembro de 2011

muitas coisas ariadne

chegámos à estação
os faróis
indicam o limite
para diante ergue-se o mar
vento ondulando
no verde
o sal dessa água
é uma rede que envolve os tornozelos

afastas-te muito rápido
com pés de fauno
mas há este instante na rapidez
em que ela é a mão cerrada sobre o ombro
o limiar da porta

coisas perdem-se ou são
um cerrar de dentes
mão fechada contra o ombro
os olhos absortos
lanternas de onde
a água pinga
ruelas que escreves
uma vez outra vez
volta atrás
de novo
imitando os movimentos do vento
tropeçando esse ar que corre
apaga-as em poeira
a essas ruas que
vão sendo moedas gastas
faces apagadas
nas mãos
uma impressão
que passa rápido

atirada para o cesto
a roupa despida é o fim do dia
e procuras-te no reflexo
mas sabes que só
a laje de mármore
partida
por insuspeita pancada cega
vem falar a tua língua

dancemos
por isso
em cacos

a certeza de que a nossa história
é um objecto
inacabado
que pertence à desordem onde
os pés pousam
aqui e agora as nossas
muitas luzes
serão traduzidas em estilhaços
simbolizadas
por jeans rasgados nos joelhos
essa canção que
na voz ténue do rapaz
te encontra à esquina
à espera
e rompe na noite
e morre
nas arcadas
volteando em torno
das grades azuis da primeira chuva

o que dizemos
incendeia-se nos candeeiros
respiração intermitente
e talvez se torne aos poucos
a chuva
que se esconde nos cântaros
deixados diante
de muros brancos azuis desolados

esses gigantes guardiões
de vasos de flores
que cedeste
ao sol ao frio
a um modo oscilante
de não voltar mais

os narradores
do teu passar desajeitado
traduzido apenas e trazido de volta
no mover-se
do rapaz de sapatilhas vermelhas
dançando na sala vazia

virá mais tarde esse porquê
perguntado baixinho
enquanto absorto róis as unhas

f. deixou junto à ponte os sapatos
e atravessou descalço
entrou no reno
com pequenos seixos contados
na mão
nunca adivinhou as margens

ferlinghetti
disse
cultivate dissidence and critical thinking

mas eu lembro-me antes de l.
a minha memória mais perene
é feita dessa rapariga
sozinha num quarto
lendo na pouca luz
a sua voz enchia tudo
ela nunca soube
eu ouvi-a encostada à parede
tentava seguir
esse murmurar
que era o meu próprio reno
um tempo que como água
não acabava
não podia acabar

ela não sabia
e era ariadne
luminosa ariadne
de verdade
com o seu fio luminoso
a que se prendia
uma tristeza de ser puxada
trazida contigo

mas naquelas horas
só existia o rapaz
que escapava intacto
do labirinto
espada ensanguentada na mão
um minotauro a menos
nas contas de fim do dia

os nossos heróis eram assim
estavam todos acima
das linhas de destruição
eram vagamente perfeitos
demasiado bonitos
um pouco mais que humanos
percebemos mais tarde
que não eram
assim tão dignos da nossa afeição

na luz acesa
veio devagar essa chuva
que te tracejava a cara
fora do desenho a lápis
intuímos que há este instante
no silêncio
em que nos tornamos
passamos à existência
na certeza dessa familiaridade
ligeiramente ameaçada
o instante em que não posso
saber mais nada de ti
envolvido na ordem fácil
que se esconde no gesto
de terminar o nó da gravata
há essa diferença mínima
a certeza de que não posso
saber mais de ti

pássaro

e espera silenciosa e terna
e a desarrumada ordem
do teu riso
onde todas as cores caiem certas
na combinação geométrica
que não adivinha essa ternura breve
essa que te sorri
como sorte
de um ponto acima

eu que só te podia seguir
até ao pátio interior
a partir destes labirintos de ruas
que lanternas de papel
acenderam
a rápida passagem entre sons
que traz de volta a música

essa rapidez
dúctil
rude
táctil
que nada
pode curvar

e sei que havia esta fronteira na tarde
onde silenciosamente te cercaram
os passos da chuva em torno dos alpendres
um relógio bate algures a hora
e tu tornas-te o gabriel de hill


esse
anjo sensato
que precipitando-se
arrasta consigo
em queda
a luz
isso que o
melhor poeta
aprendeu a definir
como
escuridão sensível

Tatiana Faia

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