A fé de Kien, tão inquebrantável como o seu receio ante uma humanidade que profanava livros, lançou-se por um terreno predilecto. Deplorava a fraqueza de Cristo, aquele estranho esbanjador. Multiplicação de pães e de peixes, curas e parábolas desfilaram pela sua mente e pensou na quantidade de livros que se teriam salvado com aqueles milagres. Sentiu que o seu actual estado interior se assemelhava ao de Cristo. Ele teria feito o mesmo em muitos casos, apenas com a diferença de que os objectos do amor de Cristo lhe pareciam aberrantes, tal como o daqueles japoneses. Como o filólogo ainda estava vivo nele, decidiu consagrar-se, quando o país voltasse à normalidade, a uma exegese textual completamente nova dos Evangelhos. Talvez Cristo não se referisse exactamente aos homens e uma hierarquia bárbara tivesse deturpado o sentido original das suas palavras. A inesperada aparição do Logos no Evangelho de São João dava pasto, precisamente porque a hermenêutica tradicional a atribuía a influências gregas, a diversas conjecturas deste tipo. Kien sentia-se suficientemente informado para fazer retroceder o Cristianismo às suas verdadeiras origens e, se bem que não fosse o primeiro a transmitir as autênticas palavras do Redentor a uma humanidade sempre disposta a ouvi-las, esperava, não sem certa convicção, que a sua interpretação fosse definitiva.
Elias Canetti, Auto-de-Fé
Trad.: Luís de Almeida Campos
Cavalo de Ferro
Estou agora a ler este livro, em não pequena parte graças a esta tua sementeira. Gratias tibi, André.
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