sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Um antigo país

108. Acordar de manhã num comboio que parou, à frente do mar que se consegue sentir; os seixos polidos na Ponte de Dusan em Skopje, onde, aos cinco anos, notei pela primeira vez que tinha sombra; esquiar com o meu pai em Jahorina, perto de Sarajevo; uma noite de Maio na linha de Silba no norte da Dalmácia com as suas abundantes plantas mediterrânicas; um rapaz a matar peixes à pedrada no lago Prespa na Macedónia; um fulminante caso amoroso adolescente de três dias em Vrsar; serviço militar em Rijeka, em Trsat; uma pequena estação de comboios na linha Zagreb-Belgrado cujo nome esqueci, com uma sala de espera saída do filme de Menzel, Comboios Vigiados de Perto (ali a solidão era espessa como azeite); viagens de estudo às cataratas do rio Krka na Herzegovina; um regato lodoso nos subúrbios de Zenica na Bósnia, ao lado do qual eu ia a pé para uma escola chamada "As irmãs Dietrich", com os atacadores desatados porque ainda não os sabia atar; um monte de baratas num quarto de hotel da cidade eslavónia de Osijek e dormir de luz acesa; o golo de Dzajic contra a Inglaterra no campeonato europeu de futebol em Itália em 1968; viajar pelo caminho de ferro de bitola mais estreita de Sarajevo para Niksic no Montenegro; a recepção a Djurda Bjedov no cais de Split depois de ter ganho a medalha de ouro no México; os primeiros concertos do grupo bósnio Bijelo Dugme num pavilhão desportivo de Nova Belgrado; a nascente do rio Una; cantar o hino nacional antes dos jogos entre repúblicas (um coro de cem mil pessoas); a sinagoga abandonada de Subotica; todos os cestos da estrela do basquetebol Kresimir Cosic; afogar-me no Vardar (aos quatro anos o meu primeiro encontro com a morte); uma avenida de árvores escura como um túnel; em Pula, e um aguaceiro de Verão sobre essa avenida; os pés da estátua de Grgur de Nin; o silêncio e o vazio ensombrado das ruas de Ohrid no calor de um dia de Agosto; um choque eléctrico em criança, a fazer chichi ao lado de uma valeta de uma casa abandonada perto de uma aldeia de Niksic, à espera, enquanto pioneiro, para cumprimentar o Presidente no regresso de visitas a países asiáticos e africanos não-alinhados; a primeira guitarra-baixo eléctrica Jolan, de fabrico checo; dormir numa tenda nas montanhas de relevo cársico da Herzegovina e viajar lentamente de Mostar, descendo o vale Neretva, para Dubrovnik; notícias do terramoto em Skopje; a camisa de xadrez que recebi como auxílio do México (ou seria da Venezuela?); um vagabundo no lago Matko a cantar acompanhado por um instrumento oriental que guinchava. "O que vamos comer ao chá: batatas, pão e queijo..."
«Estas são as imagens frias, melancólicas, objectivas (ou mais precisamente fotografias verbais) de uma vida passada num antigo país que nunca mais voltará a ser possível ligar como um todo», escreve Mihajlo P. numa carta.

Dubravka Ugresic, O Museu da Rendição Incondicional, Sofia Castro Rodrigues (trad.), Cavalo de Ferro, 2011.

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