quinta-feira, 9 de junho de 2011

sirenes

What I lost was not a part of this.

Geoffrey Hill, “Old Poet with Distant Admirers”

I

não pertenço à beleza fixa das coisas
sou só um elo na corrente que prende a noite
ao seu pedestal a mão fechada sobre o papel
juntos atravessámos as moradas da noite fomos
os habitantes pacatos dessas paredes escutei
de amigos o riso entre cigarros em bares que
placas não anunciam em ruas discretas que
só existem em lisboa às três da manhã escutei
o seu riso como um murmúrio de rio em cuja
corrente nos perdemos nem a notícia da ínfima
pegada na margem tomei parte em conversas que
não fariam o guião de nenhum filme lucrativo
essas conversas tomaram uma parte de mim
nunca soube se me baniram para sempre da
solidão ou se a moldaram mais perfeitamente

II

o que perdi não foram troços de ruas sem
nome o traço branco do giz no muro conversas
iniciadas na hora de partir o que eu perdi não
era parte disto era, o que tu não disseste, parte
de uma coisa que estava apenas em mim sofremos
tanto para arrancar as últimas raízes do solo
a notícia dessa árvore finalmente cortada chega-
-me tarde por correio expresso um papel deixado
entre livros numa caixa de cartão o que perdemos
já só está dentro da nossa cabeça a sua imagem
tão fielmente capturada finalmente feita em cacos
que palavras podiam avançar por entre destroços
nem o riso a verdadeira alegria nos redime é assim
que perdemos mesmo o que gravamos na memória

III

barcos em que atravessamos o mar de noite
a sua brancura cega nas águas um eco em
profundidade moeda caída no oceano não
chegaríamos a escutar o estrépito o pequeno
som que se esgota como dois tentando conversar
entre o barulho de sirenes essa frase o ressoar
da moeda caída no mar e tu do outro lado
o que disseste e isso está entre o que perdi
a música escutada em bancos de ferries
quando nada podia redimir esse peso que
te vergou os ombros a linha de cinzento
onde cai o primeiro traço da noite o que
perdi estava no tempo sem ser de tempo
a diferença é menos do que infinitesimal
e não servirá o teu lamento o sopro agudo
dessa sirene que te diz que terminou

IV

era alguma coisa antes presa à barreira
desse eco tornado som tornado coisa
um pequeno gesto sem fé a mulher que
olhando o relógio acaba a fitar as unhas
a ela ninguém lhe disse quando o esperava
ouvir «ontem não te vi em babilónia»
o que ela perdeu em nada ficou gravado
assim uma frase escrita num muro por alguém
de passagem que te traz a notícia distante
de não te ter visto uma folha dobrada em
quatro a carta veladamente passada de uma
mão para outra de que outro modo chegam
as mais distantes notícias para uma ausência
tua ou minha que importa se está no eco da
sirene que atravessa o mar projectada a tanta
distância aguda ensurdecedora quase terrível

V

a redenção disto está em nós e é sem memória
talvez se pareça com tardes de agosto que só
existem na agudeza de pátios brancos e quadrados
ou no ressoar da tua fala em claustro fechado
uma conversa que tentei seguir com a curiosidade
inconveniente que reservamos apenas
para o instante em que queremos ler os outros
incertas páginas de livros a redenção é também
uma forma de perda o que perdi era parte de
tudo viaja em longa distância dispersa-se pelo mundo
viaja sobretudo com o que amei encontra-me
à distância de janelas abertas na claridade ociosa
de um olhar que se projecta na distância e se perde



VI

o olhar sirene perdemos apenas o que não foi
verdadeiramente dito é disso que estamos
exilados há-de doer silenciosamente em horas
de lenta insónia quando estamos mais agudamente
conscientes do que somos para isso não haverá
um barco tardio para o qual possamos comprar
a travessia ou o cair de cansaço nos seus bancos
de ferro o que está perdido parece-se com o amparar
da cabeça contra o ombro o perscrutar de uma estrela
que entre nuvens não podemos escolher no páramo
por estes dias até os países se acabam em nevoeiro

Tatiana Faia

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