terça-feira, 7 de junho de 2011

Ciceronianus, non Christianus


Como há muitos anos, por causa do Reino dos Céus, me tivesse privado de casa, parentes, irmã, familiares e, o que é coisa muito mais difícil, do hábito de fazer refeições abundantes, e me dirigisse a Jerusalém para batalhar, ainda não conseguira abdicar por completo da biblioteca que em Roma, com muito zelo e custo, tinha constituído para meu uso. E assim, infeliz, jejuava para depois ler [Marco] Túlio [Cícero]. Depois de muitas vigílias nocturnas, depois das lágrimas que arrancava do mais fundo das minhas entranhas, pegava num Plauto. E quando voltava a mim mesmo, e começava a ler os Profetas, a sua linguagem inculta horrorizava-me. E porque não via a luz com os olhos cegos, não considerava que a culpa fosse dos olhos, mas do Sol. 

Enquanto a antiga Serpente assim me iludia, em meados da Quaresma a febre introduziu‑se‑me nas entranhas, invadiu-me o corpo esgotado, e sem descanso algum (o que parece inacreditável de se dizer) de tal modo me devorou os infelizes membros, que pouco mais era do que pele e osso. Entretanto, preparavam-se as minhas exéquias, e, já arrefecendo o meu corpo, o calor vital da alma apenas palpitava no meu coraçãozinho morno, quando de repente, arrebatado em espírito, sou arrastado ao Tribunal do Juiz, onde tanta era a luz, e tanto o fulgor vindo do brilho dos circunstantes, que, prostrado por terra, não ousava olhar para cima. Tendo-me sido perguntado sobre a minha condição, respondi que era Cristão. E aquele que presidia disse: “Mentes! És ciceroniano, não Cristão! Na verdade, 'onde estiver o teu tesouro, aí está o teu coração' [Mat. 6:21]”. Imediatamente emudeci, e por entre os açoites (na verdade ele tinha ordenado que me açoitassem), mais era atormentado pelo fogo da consciência, considerando comigo mesmo aquele versículo 'mas no inferno quem te louvará?' [Sal. 6:6]. Então comecei a gritar, e a dizer gemendo: “Tem piedade de mim, Senhor, tem piedade de mim!” Estas palavras ressoavam por entre os chicotes. Finalmente, prostando-se os que ali estavam aos joelhos do Juiz, imploravam que perdoasse a minha juventude, e desse oportunidade ao meu arrependimento, e que ele voltaria a atormentar-me, se eu voltasse a ler os livros do gentios. Eu, que, apertado pela angústia daquele momento, teria querido prometer até coisas mais graves, comecei a jurar e, tomando o seu nome por testemunha, a dizer: “Senhor, se alguma vez possuir livros seculares, se alguma vez os ler, ter‑te-ei negado”. 

Dispensado depois de pronunciar este juramento, regressei ao mundo superior, e, perante a admiração de todos, tinha os olhos tão inundados de lágrimas, que fiz com que até os incrédulos tivessem confiança em mim. Mas aquilo não tinha sido um sono, nem sonhos vãos, com que somos tantas vezes iludidos. É disso testemunha aquele tribunal diante do qual jazi, e o terrível juízo que temi. Que nunca me volte a acontecer cair sob tal interrogatório! Juro que tinha as costas negras, que senti as chagas depois do sono, e que a partir daí li os textos divinos com zelo maior do do que aquele com que antes lera os mortais.

Jerónimo (347-420), Carta 22 a Eustóquio, 31.

Trad.: André Simões
Boneco: Bernardino Mei (c. 1612-c. 1676), A visão de São Jerónimo

Sem comentários:

Enviar um comentário