sábado, 4 de junho de 2011

Uma página de Boccaccio

Creio, no entanto, que estás mais perto da opinião vulgar do que da verdade, ao censurares-me com tal aspereza o ter-me baixado a uma pessoa de condição medíocre. Pareces reconhecer que a escolha de um nobre não te teria feito sentir do mesmo modo a minha falta. Sendo assim, não é portanto a minha falta que tu censuras, mas sim a da Fortuna, que por vezes eleva bem alto os indignos e deixa os mais dignos num nível inferior.
Mas deixemos isto por agora e voltemos ao início das coisas. Verás todos os homens formados de uma só massa de carne, verás que um só Criador concebeu as nossas almas dotando-as de forças iguais, de igual poder, de iguais faculdades. Primeiro, é a virtude que estabelece distinções entre todos, porque todos nascemos iguais. Os que tiveram e adquiriram maior porção de virtudes foram chamados nobres. Embora uma prática diferente tenha depois obscurecido esta lei, ela nunca foi totalmente abolida nem obscurecida pela Natureza e pelas boas tradições. Por isso, quando um homem segue a linha da virtude, faz aos olhos de todos figura de fidalgo. Mesmo que tenha outro nome, a culpa disso não é sua mas de todos aqueles que se recusam a dar-lhe o seu verdadeiro nome. Agora compara com Guiscardo todos os nobres da tua corte, sonda as suas qualidades, os seus costumes, a sua vida. Se quiseres ser imparcial, reconhecerás que Guiscardo é nobre entre todos e que os teus nobres não passam de vilões. A fim de julgar o valor e a virtude de Guiscardo, fiei-me unicamente na sensatez das tuas palavras e no que os meus olhos viram. Quem o celebrou tanto como tu quando ele realizava todas essas acções que atraem o elogio sobre os homens valorosos? Ninguém, sem dúvida, irá censurar-te por isso. Se os meus olhos não me iludem, nenhum dos elogios feito por ti foi exagerado. E se cometi algum erro a este respeito, és tu o responsável pelo erro. Dirás tu, pois, que me entreguei a um homem de condição vil? Não dirás a verdade se o disseres.

Boccaccio, Decameron, 1ª novela, 5ª jornada, Urbano Tavares Rodrigues (trad.), Relógio d'Água, 2006.

E este excerto demonstra que Ghismonda, a sua constância de carácter quando tudo em seu redor ruía, a consciência de si própria e do que a rodeia, das leis que a limitam, continuará a ser uma das minhas mulheres favoritas na literatura do Ocidente.

Sem comentários:

Enviar um comentário