quinta-feira, 1 de abril de 2010

Podia repetir?

Quanto mais se envelhece, tanto mais entendimento se tem em relação à vida e mais gosto para o que é agradável e capacidade para apreciar; resumindo, quanto mais competente um indivíduo se torna, menos satisfeito fica. Satisfeito, completamente, absolutamente e de todas as maneiras, isso nunca se fica, e estar mais ou menos satisfeito não vale a pena; assim sendo, é melhor estar totalmente insatisfeito. Qualquer pessoa que tenha examinado o assunto aprofundadamente dar-me-á decerto razão quanto ao facto de, ao longo de toda a vida, nunca ser concedido a um indivíduo, nem por uma meia-hora, estar absolutamente satisfeito de todas as maneiras que possam pensar-se. Que para tanto é nomeadamente necessário algo mais do que ter alimentação e vestuário, não precisarei decerto de dizer. Uma vez estive lá próximo. Uma manhã levantei-me e senti-me desusadamente bem; o meu sentimento de bem-estar aumentou ainda, sem analogia com qualquer outra experiência, até ao meio-dia; precisamente à uma da tarde encontrava-me no ponto mais alto e pressentia o vertiginoso máximo que não se encontra marcado em nenhuma escala do bem-estar, nem sequer num termómetro poético. O meu corpo perdera o seu peso terrestre; era como se eu não tivesse corpo, precisamente porque cada função se deleitava na sua total satisfação, cada nervo regozijava-se consigo próprio e com o todo, ao mesmo tempo que cada pulsação, enquanto agitação do organismo, se limitava a evocar e anunciar o prazer do instante. O meu andar era planante, não como o voo do ave, que rasga os ares e abandona a terra, mas antes como o ondear do vento sobre a seara, como o embalar nostálgico do mar, como o transcorrer sonhador das nuvens. O meu ser era transparência como a profundidade dos baixios do mar, como o silêncio da noite, satisfeito de si, como a quietude monologal do meio do dia. Cada disposição repousava na minha alma com ressonância melódica. Cada pensamento ofertava-se, e cada pensamento ofertava-se com o júbilo da bem-aventurança: a mais louca invenção não menos do que a ideia mais rica. Cada impressão era pressentida antes de chegar, e por isso despertava dentro de mim mesmo. Toda a existência estava como que apaixonada por mim e tudo estremecia numa relação prenhe de consequências com o meu ser, tudo em mim era augúrio e tudo estava enigmaticamente transfigurado na minha microscópica bem-aventurança que tudo transformava em si, mesmo as coisas desagradáveis, o reparo mais enfadonho, a visão de algo repugnante, o conflito mais vexante. Como ficou dito, precisamente à uma hora da tarde estava eu no ponto mais alto, em que pressentia o cume dos cumes; nessa altura algo começou subitamente irritar-me um dos olhos; se era uma pestana, uma partícula, um grão de poeira, não sei, mas o que sei é que nesse mesmo instante quase me despenhei no abismo do desespero, coisa que compreenderá qualquer pessoa que tenha estado tão alto como eu e que, estando nesse ponto, se tenha ocupado simultaneamente com essa questão de princípio que é a de saber em que medida se consegue alcançar de todo a absoluta satisfação. Desde essa altura abandonei qualquer esperança de alguma vez me achar satisfeito em absoluto e de todas as maneiras, abandonei a esperança, que uma vez alimentara, não decerto de estar absolutamente satisfeito em todos os momentos, mas ao menos em certos instantes, ainda que essas unidades de instante não sejam mais do que aquilo que, como diz Shakespeare, "uma aritmética de cervejeiro seria suficiente para somar".

Søren Kierkegaard, A Repetição, Relógio D'Água, Lisboa, 2009 (trad. de José Miranda Justo)

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