quarta-feira, 14 de abril de 2010

carta de emile

a minha cidade tinha um rio
donde sobe hoje o cheiro a corações de lodo
e um eflúvio de enxofre e de moscas cercando
as cabeças dos vivos

as pontes
as que vi ruírem nas imagens dos jornais
continuam de pé algures na memória

mas não podíamos sair dali
ir falar ou trocar fosse o que fosse - ou resistir
- porque não tínhamos nada para trocar excepto
a fome e a vontade inabalável de viver

nem pão nem balas
nem esperança - e cada um de nós metamorfoseou-se
num cemitério ambulante - cada um de nós
sepultou na alma uma quantidade desumana
de dor e de mortos

tudo se decompões
apodrece
e as mãos enterram-se no estrume das horas - assim
te escrevo
sentado na parte mais triste do meu corpo
noite dentro
na boca a encher-se-me de ossos - até que irrompa a manhã
e os tiros recomecem
e a cinza do cigarro caia no chão
e em mim cresça uma alegria maligna

Al Berto, Horto de Incêndio, Assírio & Alvim, 1997

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