quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Sete da tarde

e eu aqui, com o «menino de sua mãe», no plaino abandonado, que a morna brisa aquece. Ele, coitado, de balas trespassado, parece que duas de lado a lado - consta que jaz morto e arrefece. E eu a ponderar se já trabalhei o suficiente para poder conceder a mim mesma ir lá abaixo beber um café.
A ele (ao menino da sua mãe, entenda-se) raia-lhe a farda o sangue. Ficou ali tal qual como os inimigos o apanharam: no plaino onde fulminado caiu e se deixou estar - de braços estendidos, alvo, louro, exangue, corpo travado em plena marcha para se fazer de mármore, porque tenho a certeza que este menino não pode já ser de carne.
Pessoa imputa-lhe a culpa de com um olhar vazio (perdido) fitar o céu. O céu que, de acordo com a predicação que lhe atribui o sujeito poético da enunciação, que não do poema (esse é o agente referido como «o menino da sua mãe»), é cego. O menino da sua mãe não era cego, mas ficou, ou ficaram-no.
E parece que, para piorar a coisa, era jovem, muito jovem. E, ainda pior, o mais precioso tipo de filho - o único. E a mãe (a do Pessoa, parece) dera-lhe um nome (apontamento para designar uma espécie de código entre mãe e filho, o que denota intimidade) e ele o mantivera, mantivera-o, creio, porque se tornam preciosos para os filhos os nomes que as suas mães lhes chamam (or so they say), e este era (notar o sumo cuidado materno despendido e expresso na expressão que se segue) o «menino da sua mãe».
Eu não era o «menino da sua - nem da minha - mãe» porque sou menina e havia mais irmãos, o que pode justificar a menor diligência em empregar nomes afectuosos para denominar os filhos, e sobretudo porque se deu o caso de haver um irmão antes de mim, assim, parecido com este menino do Pessoa, que era moreno, cabelo e olhos escuros, primogénito não filho único, parecido comigo e tudo, que caiu morto, mas não num plaino abandonado aquecido por uma brisa morna, antes num hospital em Londres e, lugar onde regra geral pertencem os meninos, nos braços de sua mãe.
Ao menino de sua mãe, o do Pessoa, cai-lhe da algibeira a cigarreira breve. (O meu irmão não fumava.) A cigarreira do do Pessoa está boa e inteira. Nenhum problema com a cigarreira. Respira saúde, ele é que não. Parece que já não serve (nem para o exército e, extrapolação fácil, nem para a vida). E depois para acabar de nos rachar à machadada o coração, Pessoa vai-nos contar que na outra algibeira, quase a roçar o solo, há a brancura embainhada de um lenço, cuidado de criada velha, que trouxe o jovem soldado, quando ele era menino, ao colo.
Lá longe, em casa, rezavam para que ele regressasse cedo e bem. Desperdiçou-se um rapaz, jaz morto, apodrece. (Filha da putice que, na enunciação de Pessoa, ou na do sujeito poético do poema, como quiserem, para mim às vezes é tudo a mesma coisa, como dizia, filha da putice que é expressa pela paráfrase «malhas que o império tece.») Mais um menino de sua mãe. Ou melhor, menos um menino de sua mãe. Note-se neste passo o talento de Pessoa enquanto poeta: o tipo junta meia dúzia de palavras e sem empregar uma única vez, ao longo de todo o poema, a palavra dor, deixa nele gente que, mal o poema acabe, vai endoidecer de dor. Morrer de dor.
Como se rouba a alguém o que esse alguém tem de mais precioso, eis o assunto deste poema e o que ele nos ensina (ou, o que não é nunca bem a mesma coisa, o que nós aprendemos com ele). Só há, na verdade, um crime, e esse é o roubo, todos os outros são uma variação deste (ouvi isto num filme), repare-se: ao menino da sua mãe, roubaram-lhe a vida. À sua mãe, roubaram-lhe o menino e consequentemente a vida.

Se não roubar depressa este trabalho, rouba-me ele a mim.

3 comentários:

  1. Aí está outro poema cruel , uma pietà , não feita de mármore mas de palavras . E um texto consequente que venho elogiar . Presumo que onde haja obra de génio se faça eco de alguma sorte , mais não seja o da admiração . Pois mistério grande há-de haver nisso de se esculpir a dôr numa pedra ou num monte de palavras de uma forma tão conseguida .

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