sábado, 20 de fevereiro de 2010

discurso ao príncipe de epaminondas, mancebo de grande futuro

Despe-te de verdades
das grandes primeiro que das pequenas
das tuas antes que de quaisquer outras
abre uma cova e enterra-as
a teu lado
primeiro as que te impuseram eras ainda imbele
e não possuías mácula senão a de um nome estranho
depois as que crescendo penosamente vestiste
a verdade do pão a verdade das lágrimas
pois não és flor nem luto nem acalanto nem estrela
depois as que ganhaste com o teu sémen
onde a manhã ergue um espelho vazio
e uma criança chora entre nuvens e abismos
depois as que hão-de pôr em cima do teu retrato
quando lhes forneceres a grande recordação
que todos esperam tanto porque a esperam de ti
Nada depois, só tu e o teu silêncio
e veias de coral rasgando-nos os pulsos
Então, meu senhor, poderemos passar
pela planície nua
o teu corpo com nuvens pelos ombros
as minhas mãos cheias de barbas brancas
Aí não haverá demora nem abrigo nem chegada
mas um quadrado de fogo sobre as nossas cabeças
e uma estrada de pedra até ao fim das luzes
e um silêncio de morte à nossa passagem.

Cesariny, Uma Grande Razão: Os Poemas Maiores, Assírio & Alvim, 2007

8 comentários:

  1. Lembraste-me o Ruy Belo , outro não menos maior , não menos desencantado :

    Um dia alguém numa grande cidade longí­nqua dirá que morri
    di-lo-á decerto com pena mas sem o alívio que eu próprio decerto senti
    primeiro ao solucionar de vez esse problema de respiração que a vida é
    desde a convulsão da criança que a meio do copo deixou ir leite para a traqueia
    até a instantânea atrapalhação do mergulhador a quem de súbito falta o ar comprimido
    só dispõe da reserva e lhe faltava tanto que ver no fundo sonhador do mar
    depois senti alívio porque às vezes a meio por exemplo da aragem na face
    eu pensava na morte como problema metafísico a resolver pelo menos com higiene
    se não com dignidade com acerto como mais um problema à medida do homem
    Eu estava do lado dos vivos estou do lado dos mortos
    o grande problema era saber se me doía ou se não me doía
    agora nem sei se me doeu ou não ou fui um mero espectáculo de mau gosto
    para a única pessoa encarregada de me ajudar nesse momento
    Ninguém a princípio terá sabido que eu morrera só minha
    mulher avisada de longe virá e me porá a mão sobre a testa
    os demais não não disponho do olhar para me defender
    o tempo depressa se passa são trâmites legais até me terem deixado
    debaixo do chão bem debaixo do chão sem frases lidas
    ou gravadas sem sentimento nenhum
    Uns dias depois um pequeno grupo junto a uma grande janela
    olhará a neblina da manhã de janeiro
    e terá mãos que eu tive para os meus problemas de vivos
    Onde eu estive sobre uma mesa com uma perna cruzada
    suaves começarão a suceder-se e acumular-se os dias
    como cartas revistas linguísticas ou livros adormecidos
    despertos apenas no momento fugaz da leitura
    A vida será indistinta virá até nós como árvores
    rodará em volta como um lençol até cobrir-nos os ombros
    Falareis de mim não posso impedir que faleis de mim
    mas já nada disso me pesa como o simples facto de ter de ser vosso amigo
    Estou só e só para sempre e só desde sempre
    mas antes por direito de opção. Agora não
    Deixaram-me aqui doutor em tantas e tão grandes tristezas portuguesas
    e durmo o sono das coisas convivo com minerais preparo a minha juventude definitiva
    Era como eu esperava mas não posso dizer-vos nada
    pois tendes ainda o problema e a cara da pessoa viva.

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  2. e esse lembra este:
    Eu que às vezes encontro sem saber porquê
    um simples não sei quê em estátuas retratos antigos
    de límpidas mulheres desconhecidas
    eu que de súbito à primeira vista me apaixono adolescentemente
    por essas mulheres mortas mas contemporâneas
    de um pobre poeta português do século vinte
    levadas até ele talvez por um discreto gesto
    às formas e às cores impresso por um homem
    que na arte encontrava a única razão de vida
    abro a pasta e deparo com o teu retrato
    um retrato de passe anos atrás tirado
    no sítio suburbano onde primeiro vivemos
    e juntos suportámos com surpresa a solidão
    de sermos dois e ela só vergar os ombros onde os dias nos poisavam
    Conheço outros retratos teus onde também estás viva
    um deles bem me lembro estava à minha espera em saint-malo
    uma tarde ao voltar do monte saint michel
    nesse verão bretão onde então procurava
    justificação por mínima que fosse para a vida
    numa das muitas fugas de mim próprio
    que às vezes empreendo embora antecipadamente certo
    de que só pela morte enfim me encontrarei comigo
    com todos quantos verdadeiramente amei
    alguns desconhecidos e alguns mesmo inimigos
    sobretudo sedentos de justiça
    de que depois somente de bem morto hei-de dispor daquela paz
    que sempre apeteci mas nunca procurei
    até por não ter tempo para isso nem sequer para saber
    coisas simples como saber quem sou porque ao certo só sei
    que muito mais passei naquilo em que fiquei
    nem que fossem os filhos ou os versos
    que fiquei muito mais naquilo onde passei
    como passos na areia no inverno ou repentinas sensações
    de me sentir de súbito sensivelmente bem
    encher o peito de ar sentir-me vivo
    São retratos diferentes de quem foste um breve instante
    e nele floriste e apenas não murchaste
    por haveres ficado um pouco mais em tais fotografias
    Mas há em todos eles uma graça inesperada
    a surpresa da corça ou restos dessa raça
    que há em ti talvez um pouco mais que nas demais mulheres
    expressão sempre surpreendente da surpresa
    mesmo até para quem te conhece tão bem como eu te conheço
    Se nuns mais do que noutros sem excepção desponta
    a madrugada que era e é esse teu riso claro
    quem primeiro falou de riso claro
    talvez houvesse ouvido a água quando corre sobre os seixos de
    um ribeiro
    talvez a houvesse visto branca e fresca
    mas teve de inventar pra conquistar essa metáfora
    quando eu que te ouvi rir não fiz mais do que ouvir
    e sei que o som da água imita o teu sorriso
    (...)
    Se um dia penso porventura te perder
    mulher simples recôndita e surpreendente
    sobre quem recaiu o peso do meu nome
    só então saberei quanto valias verdadeiramente
    Estás presente em mim como ninguém
    e sabes quão terrivelmente amei e amo outras mulheres
    além de ti além de minha mãe
    Mas tu tens o meu nome clara rilke tu trocaste
    a tua alegre vida irrequieta
    no único infeliz dos teus negócios
    por um poeta pobre velho e feio como eu
    Contigo aprendi coisas tão simples como
    a forma de convívio com o meu cabelo ralo
    e a diversa cor que há nos olhos das pessoas
    Só tu me acompanhaste súbitos momentos
    quando tudo ruía ao meu redor
    e me sentia só e no cabo do mundo
    Contigo fui cruel no dia a dia
    mais que mulher tu és já hoje a minha única viúva
    Não posso dar-te mais do que te dou
    este molhado olhar de homem que morre
    e se comove ao ver-te assim presente tão subitamente
    Bons dias maria teresa até depois
    preciso de tomar o meu pequeno almoço
    a cerveja era boa mas é bom comer
    como come qualquer homem normal
    e me poupa ao perigo de até pela idade
    me converter subitamente num sentimental

    (é ainda Ruy Belo, e na minha cabeça Luís Miguel Cintra também, tudo gente de boa memória, portanto)

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  3. « ao certo só sei que muito mais passei naquilo em que fiquei »

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  4. Às vezes sinto-me farto
    por tudo isto ser sempre assim
    um dia não muito longe não muito perto
    um dia muito normal um dia quotidiano
    um dia não é que eu pareça lá muito hirto
    entrarás no quarto e chamarás por mim
    e digo-te já que tenho pena de não responder
    de não sair do meu ar vagamente absorto
    farei um esforço parece mas nada a fazer
    hás-de dizer-me que pareço morto
    que disparate dizias tu que houve um surto
    não sabes de quê não muito perto
    e eu sem nada para te dizer
    um pouco farto não muito hirto e vagamente absorto
    não muito perto desse tal surto
    queres tu ver que hei-de estar morto?

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  5. Lembrei-me das basófias do Bazarov e do epílogo de « Pais & filhos» . Ainda sobre o efémero , quem escreveu isso , JP ?

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  6. ( acto de contrição do invejoso : se eu tivesse um gato desses era menos atreito à metafísica...eh eh eh...)

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  7. ( hummmm... porque é que eu não fiquei surpreendido ?

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