segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Salmo de David

Na casa de um enforcado é proibido dizer que a corda
vai atrás do balde. Não é vacuidade a mulher sucumbir ao feitiço
de uma sombra nocturna e oferecer o seu corpo a um menestrel,
em Adulam, ou aqui, nos vales
do Butão. Na tua idade, David, o dos belos olhos não tocava harpa,
mas fazia dançar as gazelas ao som da flauta. E foi assim
que atraiu Mical, Aquinoam e a mulher de Carmel, como com uma corda.
Um instrumento tão banal, mas as moças não resistiam à sua estranha
e plangente melopeia, ao diabrete ruivo que dançava e saltitava
e apascentava o seu rebanho entre os lírios, corria atrás do vento
e desflorava as mulheres, cuja carne febril se arrepiava
sob a sua mão untada de gordura e do sangue dos heróis, hábil na funda.
E assim vadiou, matou, amou, derrotou dezenas de milhares,
e se fez rei. Passados muitos anos, naquele carvalho, a corda
foi atrás do balde. Depois veio o luto. A casa de um enforcado.
A harpa dos salmos. E, por fim, a faca. Como o dia se fanou. Passou.
Agora é tudo pó.

Amos Oz, O Mesmo Mar, Lúcia Liba Mucznik (Trad.), Edições Asa, 2007.

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