terça-feira, 6 de outubro de 2009

(No coração a consciência)

Trabalho o dia todo como um monge
e à noite vagueio, como um gato
à cata de amor... Vou sugerir
à Cúria que me santifique.
Com efeito, respondo à mistificação
com a mansidão. Olho com olhos
de imagem os que vão linchar-me.
Observo o meu massacre com a coragem
serena de um sábio. Pareço
sentir ódio, mas escrevo
versos cheios de amor atento.
Estudo a perfídia como um fenómeno
fatal, como se dela não fosse objecto.
Tenho pena dos jovens fascistas,
e aos velhos, que são para mim formas
do mais horrível mal, oponho
apenas a violência da razão.
Passivo como um pássaro que, voando,
tudo vê, e, no seu voo para o céu,
leva no coração a consciência
que não perdoa.

Pier Paolo Pasolini, Poemas, Maria Jorge Vilar de Figueiredo (trad.), Assírio e Alvim, 2005.

3 comentários:

  1. A decadência que transparece dos poemas de Pasolini é muito atraente e ainda mais a maneira como ele faz uma « contra-decadência » - Pareço/sentir ódio, mas escrevo/versos cheios de amor atento - que torna a sua poesia um misto esplendoroso dos sentimentos humanos e ambiguidade do quotidiano. Pena não conseguir, quase nunca, se libertar das lutas marxistas e/ou religiosas, que obliteram a essência humana da sua poesia, retirando pureza aos seus poemas.
    Saliento também a excelente edição que a Assírio e Alvim lançou em 2005, bastante completa e com uma excelente tradução, a introdução à sua obra está eficaz e oportuna.

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  2. Também a mim me pareceu que a tradutora fez um excelente trabalho. Não sei se os conflitos marxistas e religiosos de Pasolini efectivamente obliteram a essência humana da sua poesia, acho mais que fazem parte dela, que a compõem e que são uma linha de força (veja-se os últimos poemas da antologia), contudo, vejo-me forçada a concordar que tornam os poemas bastante datados. Muito obrigada pelo seu comentário atento. Cumprimentos, Tatiana.

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  3. Acima de tudo, esses assuntos/temáticas limitam os poemas, mas uma pessoa como ele (Pasolini) não os poderia ter escrito de outra maneira, mas se por uma mero acaso tivesse sido possível melhorava exponencialmente, tendo em conta que já nesta situação tem qualidade. Muito mais coisas há a dizer sobre a maneira como Pasolini coloca a política (principalmente) na sua poesia, coisa que, admito, não gosto.

    « Não, o poeta não faz passar para a poesia aquilo que quer. Não é uma questão de vontade, nem de boa vontade. O poeta não é senhor de si próprio. »

    Henri Michaux, A verdadeira poesia faz-se contra a poesia

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