sexta-feira, 8 de julho de 2011

perséfone

O que amo nasce incessantemente
O que amo está sempre no seu princípio.

Odysseas Elytis, Sol O Primeiro, III

a mão de pedra finalmente
apontou para nada
silenciou-se
está feita em cacos
na brancura espessa da tarde
enorme pesada
o braço que a sustentava
cedeu ao seu próprio peso
a mão
tombou
sem chegar a apodrecer
as pedras não apodrecem
desfazem-se em terra
na precisão de pequenos grãos
a história interrompe-se
não vale a pena
perguntares por uma direcção
devagar sentires-te inquieto
frutos e flores
podem adornar os teus cabelos
imitarás confusamente o jovem dioniso
entre as portas de uma casa fechada diante do mar
em esplanadas rodeado de amigos
o ruído como protecção
podes procurar por ti em estátuas destruídas
pedir notícias da tua viagem sem mapa
o corpo ao alto
inclinado entre as velas
o barco e o seu rumo no entardecer
e alguém que da ponte
te observa e acena
sem que nenhum nó te ate
o mar que não fixa o teu regresso
nem reflecte a tua imagem
deixa no corpo sal
afasta-se
e tu recuas diante da maré
tapas com a mão os olhos
na claridade que fere percebeste
não há de verdade uma continuidade
não saberíamos dizer
quando pela primeira vez o entendemos
estava talvez em objectos concretos
verdadeiramente enumeráveis
uvas esmagadas
que se tornam vinho
a possibilidade de arrancar do caderno
as últimas páginas
a conversa acabada
os dedos sobre a máquina de escrever
havia junto à tua janela um candeeiro
podia passar a noite
lançando pedras do outro lado da rua
devia dizer-te
que gastei todas as minhas metáforas de luz
contar-te que o que me sobrou foi o hábito de avançar
de continuar a correr
algumas coisas devemos perdê-las
extinguindo-nos
diante do espelho em estilhaços
trocámos os papéis
confundimos as nossas falas
temos uma memória
feita de palavras em curso
escrevemos a partir de um sítio
onde as coisas estão acabadas
mas eu podia dizer-te
imitando elytis
que tudo o que amei permaneceu jovem
enterrando as mãos nos bolsos
tu responderias
é só um verso isso
a música que restou na luz dos espelhos
a música num espelho longe (manuel gusmão)
equivale
ao osso do braço quebrado
estava já tudo dito
quando se disse
voi ch’entrate
lasciate ogni speranza
mas se a abandonássemos
não haveria história
visitaríamos apenas os mesmos quartos
repetindo as mesmas mentiras cansadas
haveria sempre como retirar
o que ficara dito
para esquecer a esperança é preciso ter imaginado
as suas asas no calor terrível
na tarde na sede na respiração
entrecortada pela poeira
o seu cantar em torneiras que pingam
mal fechadas em torno do calor
e é preciso tê-la perdido
de que outro modo seríamos inteiros
teríamos lançado da distância
a pedra à janela
um som mansamente
uma sugestão
de passos ao de leve
que te resgatou do sono
eu podia repetir-te
que tudo o que amei permaneceu jovem
não é só um verso
ao mesmo tempo é
a mais perfeita forma de esperança
a mais acabada forma de desespero
talvez isto sirva o motivo de dizer
que aqueles que não regressaram
recomeçam
que essa música só começa a existir
para nós
quando aprendemos o riso
e começa a existir devagar
a sua velocidade é a do impulso
dado a um barco de brinquedo
num tanque
o nosso drama em miniatura
as figuras a que concedemos uma fala
à distância de dez mil passos
quando a voz te puxou pelo ombro
pensei que eras orfeu
aprendendo a olhar para trás
tinha no bolso um lápis
e o relógio de pulso
dobrado sobre si
sinais para alguma coisa
que foi interrompida
palavras em curso
o que acontece
e vi isso
tudo o que amei ficou no seu princípio
nascendo incessantemente
talvez perséfone
já tivesse provado
a romã
podia dizer-se
que contra isso havia a luz do sol
à superfície
as minhas horas afundadas
em lagos
nos teus olhos
onde a noite
se prendeu como arestas
perfeitos ângulos
que se opõem
rochas junto ao mar
onde vamos pela vaga
ilusão do voo
que é só o instante
que está antes de bater
contra a água
não queríamos o que era perfeito
só a repetição
das coisas dentro do tempo
essa ilusão
de que tudo o que amámos
continua a despontar
talvez só possamos imitar
a suave morte que
se adensa
e que deméter
dá à terra ao saber-se
sem perséfone
mas
e mesmo que seja assim?

Tatiana Faia

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