domingo, 17 de julho de 2011

L123 ou o que as beldades lêem no comboio

Ia absorvida num livro de bolso, cuja natureza instintivamente conjecturei: era Rilke ou Baudelaire, ou quiçá Pascal, a avaliar pela expressão concentrada e meditativa do seu rosto amoroso.
De repente, dois olhos de lince, cinzentos e requintadamente enviesados, ergueram-se da página e fixaram-se em mim, durante uma longa e intencional mirada escrutinadora que me pôs os joelhos a tremer como caldo de gelatina. Teria ela adivinhado a minha adoração, através do seu telepático sentido feminino? Devia eu avançar, requisitar-lhe o livro e ler-lhe em voz alta uma passagem, um trecho que para sempre nos tornasse inseparáveis almas? Antes porém de eu poder agir, o caso rumou sozinho. O comboio parou na estação da Rua 34, ela levantou-se, arrumou o livro na carteira, e vi então que era a Arte de Amar, de Ovídio.

S. J. Perelman, O Mundo de S. J. Perelman, trad. de Júlio Henriques, Tinta da China, Lisboa, 2011

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