Ela deitara-se, cansada de esperar, e dormia com a lâmpada acesa, um livro aberto poisado no lençol à sua frente. Os passos dele não a despertaram; e, junto à cama, ele olhava-a curiosamente, como se visse uma mulher nova, que ali tivesse encontrado.
Bela, oh, sim, bela: os braços, a garganta, os ombros, de um âmbar fino, sólido, sem mancha nem defeito. Mas sob as pálpebras avermelhadas — talvez do romance que estava a ler, talvez da inquietação, da espera —, sobre as feições que o repouso distendia e que o áspero desejo da mulher que quer ser amada já não animava, que cansaço, que confissões! A sua idade, a sua história, os seus desvarios, os seus caprichos, as suas ligações, e Saint-Lazare, a violência, as lágrimas, o terror, tudo se via, vinha à tona: e as pisaduras roxas do prazer e da insónia, e o vinco de repulsa que abatia o lábio inferior, desgastado, fatigado como o parapeito de um poço comunal onde toda a gente bebe, e o inchaço inicial da carne que se desprende para dar lugar às rugas da velhice.
Esta traição do sono, o silêncio de morte que a envolvia, era uma coisa grande, sinistra; um campo de batalha à noite, com todo o horror que se mostra e aquele que se adivinha pelos vagos movimentos da sombra.
E de repente a pobre criança sentiu uma enorme e sufocante vontade de chorar.
Alphonse Daudet, Sapho, Publicações D. Quixote, 2007, tradução de Miguel Serras Pereira.
Esse livro é magnífico. (E esta coisa de andares a ler os livros que eu li quando tinha a tua idade começa a assustar-me. MUITO. :D)
ResponderEliminarJinhos.
Um blog pavesiano...e Quinta-feira, 14 de Julho de 2011Daudet, Daudet
ResponderEliminarEla deitara-se, cansada de esperar, e dormia com a lâmpada acesa, um livro aberto poisado no lençol à sua frente. Os passos dele não a despertaram; e, junto à cama, ele olhava-a curiosamente, como se visse uma mulher nova, que ali tivesse encontrado.
Bela, oh, sim, bela: os braços, a garganta, os ombros, de um âmbar fino, sólido, sem mancha nem defeito. Mas sob as pálpebras avermelhadas — talvez do romance que estava a ler, talvez da inquietação, da espera —, sobre as feições que o repouso distendia e que o áspero desejo da mulher que quer ser amada já não animava, que cansaço, que confissões! A sua idade, a sua história, os seus desvarios, os seus caprichos, as suas ligações, e Saint-Lazare, a violência, as lágrimas, o terror, tudo se via, vinha à tona: e as pisaduras roxas do prazer e da insónia, e o vinco de repulsa que abatia o lábio inferior, desgastado, fatigado como o parapeito de um poço comunal onde toda a gente bebe, e o inchaço inicial da carne que se desprende para dar lugar às rugas da velhice.
Esta traição do sono, o silêncio de morte que a envolvia, era uma coisa grande, sinistra; um campo de batalha à noite, com todo o horror que se mostra e aquele que se adivinha pelos vagos movimentos da sombra.
E de repente a pobre criança sentiu uma enorme e sufocante vontade de chorar.
Alphonse Daudet, Sapho, Publicações D. Quixote, 2007, tradução de Miguel Serras Pereira
o gajo é tradutor ...o ka gente aprende nestas coisas
Estive com isto na mão aqui há dias. Agora vou ter de comprar.
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