III Aquiles e a Tartaruga
farto da aporia dos cem metros filosóficos Aquiles
desafiou a tartaruga
para uma partida de ténis
a princípio os pés velozes de Aquiles
a torrente irrefreável do seu amor
e um jogo eficaz de serviço-rede
pareciam ensinar a prevalência da paixão
sobre a paciência a meio
do primeiro set por pouco um smash
não decapitou a tartaruga
discípula de Platão Montaigne Nietzsche Derrida
companheira de copos de um grupo de filósofos paisagistas
e exegeta de David Lynch nas horas vagas
a tartaruga seguiu fielmente
a estratégia previamente definida
controlando o ritmo da respiração
decompunha o tempo em subtis fatias de presente
presente-quase-passado e presente-quase-futuro
uma sucessão simultânea de imagens
achando assim o kairos o momento exacto
em que a raquete deve encontrar bola
aplaudia as virtudes do adversário
enquanto desenhava o mapa dos seus vícios
das suas próprias virtudes cultivava somente
as que fossem suas aliadas na guerra
contra os seus vícios
assim
no final do sétimo set
jogavam à melhor de vinte e cinco
a tartaruga ultrapassou Aquiles
a partir daqui
o coração de Aquiles começa a rodopiar
cada vez mais rápido num maelstrom de desespero
sucedem-se erros não forçados duplas faltas
os pequenos descuidos que
como comprovam as leis do ténis
inutilizam toda a beleza
a partida terminou
quando Aquiles desfez a raquete contra o solo
isto valeu-lhe a desqualificação
e o ressentimento dos deuses
por isso
viu-se forçado a desposar Hebe
a solteirona do Olimpo
e a suportar nos Campos Elísios uma vida conjugal
para a qual não tinha qualquer vocação
a embriaguez as lágrimas os exercícios de lira
a que se entregou não lhe ofereciam consolo
só ensombravam ainda mais a sua sombra
nem as visitas ocasionais o animavam
no céu a noite não divide os dias
as almas não dormem
insones vagueiam de prazer em prazer
atormentados pela dúvida
se sonham ou não
foi num estado de profunda prostração
que a tartaruga achou Aquiles
alegrou-o o reencontro
recordaram os bons velhos tempos
Aquiles fez-lhe uma visita guiada
aos acomodamentos eternos
quando terminou fitou-a sombriamente
isto não é vida para ninguém
começou assim
um novo período das suas mortes
dedicaram-se ao xadrez
a tartaruga ganhava sempre
a princípio Aquiles encolerizava-se
arremessava as peças esculpidas em corno inquebrável
com o tempo descobriu os prazeres da indiferença
o seu jogo melhorou consideravelmente
mas nem por isso deixou de perder
quando querem descansar do xadrez
a que se entregam meses a fio sem interrupção
Aquiles e a tartaruga peripatetizam
discorrem sobre o sentido da morte
sobre a possibilidade do suicídio da alma
e acabam sempre por voltar ao xadrez
J.P. Moreira
NATHANIEL FISCHER: How’s life?
CLAIRE FISCHER: How’s death?
NATHANIEL FISCHER: It’s good. Made some new friends, joined the
chess team.
Six Feet Under 3:13
para Victor Gonçalves
CLAIRE FISCHER: How’s death?
NATHANIEL FISCHER: It’s good. Made some new friends, joined the
chess team.
Six Feet Under 3:13
para Victor Gonçalves
farto da aporia dos cem metros filosóficos Aquiles
desafiou a tartaruga
para uma partida de ténis
a princípio os pés velozes de Aquiles
a torrente irrefreável do seu amor
e um jogo eficaz de serviço-rede
pareciam ensinar a prevalência da paixão
sobre a paciência a meio
do primeiro set por pouco um smash
não decapitou a tartaruga
discípula de Platão Montaigne Nietzsche Derrida
companheira de copos de um grupo de filósofos paisagistas
e exegeta de David Lynch nas horas vagas
a tartaruga seguiu fielmente
a estratégia previamente definida
controlando o ritmo da respiração
decompunha o tempo em subtis fatias de presente
presente-quase-passado e presente-quase-futuro
uma sucessão simultânea de imagens
achando assim o kairos o momento exacto
em que a raquete deve encontrar bola
aplaudia as virtudes do adversário
enquanto desenhava o mapa dos seus vícios
das suas próprias virtudes cultivava somente
as que fossem suas aliadas na guerra
contra os seus vícios
assim
no final do sétimo set
jogavam à melhor de vinte e cinco
a tartaruga ultrapassou Aquiles
a partir daqui
o coração de Aquiles começa a rodopiar
cada vez mais rápido num maelstrom de desespero
sucedem-se erros não forçados duplas faltas
os pequenos descuidos que
como comprovam as leis do ténis
inutilizam toda a beleza
a partida terminou
quando Aquiles desfez a raquete contra o solo
isto valeu-lhe a desqualificação
e o ressentimento dos deuses
por isso
viu-se forçado a desposar Hebe
a solteirona do Olimpo
e a suportar nos Campos Elísios uma vida conjugal
para a qual não tinha qualquer vocação
a embriaguez as lágrimas os exercícios de lira
a que se entregou não lhe ofereciam consolo
só ensombravam ainda mais a sua sombra
nem as visitas ocasionais o animavam
no céu a noite não divide os dias
as almas não dormem
insones vagueiam de prazer em prazer
atormentados pela dúvida
se sonham ou não
foi num estado de profunda prostração
que a tartaruga achou Aquiles
alegrou-o o reencontro
recordaram os bons velhos tempos
Aquiles fez-lhe uma visita guiada
aos acomodamentos eternos
quando terminou fitou-a sombriamente
isto não é vida para ninguém
começou assim
um novo período das suas mortes
dedicaram-se ao xadrez
a tartaruga ganhava sempre
a princípio Aquiles encolerizava-se
arremessava as peças esculpidas em corno inquebrável
com o tempo descobriu os prazeres da indiferença
o seu jogo melhorou consideravelmente
mas nem por isso deixou de perder
quando querem descansar do xadrez
a que se entregam meses a fio sem interrupção
Aquiles e a tartaruga peripatetizam
discorrem sobre o sentido da morte
sobre a possibilidade do suicídio da alma
e acabam sempre por voltar ao xadrez
J.P. Moreira
Sem comentários:
Enviar um comentário