terça-feira, 5 de abril de 2011

la valetta

I

na pouca luz conversam
palavras acesas candeias
os rostos vagos indefinidos
submersos na música gasta a agulha
contra o disco que oscila na sua órbita
um deles faz desaparecer na mão uma moeda
um truque distraidamente despendido
as mãos do outro apontam para o vazio
conversam esgrimem combatem
às vezes um deles levanta um pouco a voz
asa pequena asa sem golpe se insinua
o cigarro entre os dedos segurado conversam

II

manhã outro quarto desenhado noutra
cidade ainda ensonada deitando fora
o que restava do chá na caixa de lata
uma folha dourada se desperdiça
contra o fundo negro da caixa entre
negras aparas o desenho preciso do que fora
perdendo a planta agora arrancada
lançada para o cesto de papéis o cheiro
das aparas chá preto o rosto do outro
luminoso concreto num recorte contra
o negro assim a memória fala e por vezes
mas muito raramente insiste em cantar

III

la valetta como duas ruas que descem e se bifurcam
num plano de mar ao fundo nem sempre sabes
porque insistes na próxima cidade digamos
um hábito de prelúdio e fuga como se a vida fosse
coisa de ser convertida em música o vício de
constantemente deixar cada coisa para trás
uma conversa que o caminho não rasga corta
interrompe uma pausa de dois segundos
como luz respirando nas acesas candeias
das palavras se descolam as paredes vermelhas
de veludo o bar dois homens conversando


IV

dele o rosto quase feminino loura barba
um viking cuja voz é de água ténue traço
mas irrespirável cada palavra selada sala
se alguma vez por um braço fosses levada
pelo escuro aos tropeções esta seria
a impressão mais tarde guardada hesita
demasiado quando fala garatuja num papelucho
descorçoados versos coisas sem sentido
coordenadas de um lugar para mais tarde
ou para nunca para nunca é onde fica
o inferno dos indecisos e eles amam-no
descorçoados versos escritos com a vaga
graça com que a corça pisa a proximidade
da água mas o rapaz escreve-os furtivo
como se não os sentisse ligados à vida
queixume sem consequências onde não
poderia sequer guardar a própria sombra

V

a mágoa esconde-se noutro lugares
às vezes não nos prende a ninguém
aloja-se nas articulações no branco
silêncio dos ossos no correr do sangue
segue desenha-se próximo da próxima
cidade contém-se no modo como
o corpo hesita num movimento preso
entre uma e outra esquina os gatos
de la valetta contra o ocre das paredes
estendem-se ao sol levantam-se
como tigres preguiçosos para ensaiar
a travessia de uma rua por indolente
instinto se movem como se no seu
movimento te concedessem alguma coisa
a irreversibilidade de um ritmo lento
uma forma terna de música um modo
de pisar o ritmo secreto que não guardas

VI

a travessia de uma rua virada para poente
como um laço ele segura na mão o cigarro
distraído sacode para o chão a cinza
semeia um rasto o vermelho de tabaco e papel
ardendo risca o escuro um risco cava-se na testa
mentalmente revolves esse gesto já distante
uma coisa que te foi dada e de novo negada
por indecisão uma discreta saudade do futuro

VII

por isso a próxima cidade porque o lugar
onde as coisas acontecem é sem raiz
e não pode ser aqui tem de estar no corpo
que se mova ou na mala de novo feita e desfeita
a saia com a rectidão de um gesto dobrada
uma parafernália de coisas que te rodeiem
objectos ditos indispensáveis a argumentação
da conversa não era objectiva como velha
fotografia guardada no bolso e já muito
amachucada estes amuletos que guardamos
não para falar da nossa vida mas para a manter
confinada como toda a conversa indispensável
que inevitavelmente confina com o silêncio
com a noite com a inarticulável sílaba
que exercesse sobre ti a cordial terna
conquista de uma breve certeza que te levantasse
um pouco do chão mas escapa-se sempre
com o mesmo vagar que te provoca
com o mesmo vagar de outrora
aquele que pressentiste nos gatos de malta

Tatiana Faia

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