terça-feira, 19 de abril de 2011

cidade

I

em desequilíbrio para o primeiro oscilar do corpo
a queda veio mais tarde e pesada queda como
se fosses de pedra e todo o peso tombasse cego
se abatesse sobre o chão estás em desassossego
posta o que é coisa muito próxima da desgraça
na medida em que serve sua evocação
pensas, para com os botões da camisa
(vestiste-a apenas para urdir este verso),
que todas as coisas intoleráveis albergam
em si um peso insustentável mesmo e sobretudo
aquelas que não poderiam ser postas em balança

II

pesadas como açúcar ou quilo de farinha
que metafísicas angústias de comezinhas coisas
vão sendo com ironia arredadas todos o sabemos
e a pensar nestas coisas te consomes mordiscas
o lábio sem querer na boca o sabor acre do
sangue tentas o assobio assim o cortante som
atravessando o espaço viajando de uma ponta
a outra da noite onde poderia chegar o eco
a lugares de pedra a sítios onde nunca estiveste
e o som deixando-os iluminados como luzes trespassando
a lonjura o que o negro espesso do olhar alcança

III

divertes-te presa no diadelo que inventaste
tua gaiola de pássaro e sem phala insistes
naquele assobio com que calceteiros saúdam
as raparigas da primavera pérfido som nos lábios
de uma rapariga depois fechas os olhos
róis um pouco as unhas és reconduzida
de novo à altura que tens e estás sem phala

IV

sem phala e às vezes sem querer falar
de todo nem para enunciar o mais perene
desejo a mais urgente necessidade não falar
não dizer nada demissão de contacto
mas depois o coração preso no pulso desacelera
mordes os lábios pensas que somos quase
próximos como irmãos gente do mesmo sangue


V

mas por vezes fechas os olhos atravessas
a cidade este amparo terno dos lugares
que nos alcançam quase como a impressão
de dois corpos quando a lado adormecem
se apagam como longos dias redundando
em cansaço e sono de púrpura assim às vezes
na solidão no extremo silêncio no extremo
cansaço na perfeita aporia profunda desolação

VI

assim às vezes o meu espanto terno e triste
ante as coisas de pedra feitas saudade
de todos os lugares onde estive de quartos onde
dormi de passeios onde com ou sem tristeza
pensei que é sem peso a minha sombra
de como senti que o nó que me prende
à terra mãe pela garganta me prende
e senti pela primeira vez e muito jovem

VII

e senti pela primeira vez e muito jovem
a sede de abdicar como ambição como
aquele archeiro grego e experiente que
na lonjura não vê mas sabe do outro que
é o mais forte o calcanhar abdicar como
quem baixa a voz para acompanhar a mais
suave nota na canção favorita abdicar
e pude finalmente misturar-me contigo
misturar-me com as coisas que me rodeiam


VIII

falo-te das ruas concretas vermelhas e castanhas
dessa cidade em que entrei ainda não tocada
por amargo desespero essa que seguirá confundindo
segando baralhando e tornando a dar os fios
com que a vida se trama talvez até regressarmos
à simplicidade do primeiro som à primeira letra
talvez só analogia possível de princípio porque
nunca nada fica em branco uma vez nomeado
talvez só analogia de princípio um pouco como
de deus o jovem espanto diante das letras da Torah

Tatiana Faia

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