vimos uma mariposa pousar sobre a cabeça da
caixeira, abrir as asas da chama, e dispersar-se em
cintilações,
tocámos os pensamentos que pensávamos, e
vimos as palavras que dizíamos,
depois, voltou o ruído das colheres, cresceu o
marulhar, e o ir e vir das gentes,
mas tu estavas à beira do alcantilado, era um
amplo sorriso a baía,
e, lá em cima, pactuavam luz e vento: Psiqué
soprou na tua fronte.
Não foste Lícida, nem te afogaste num naufrágio
no mar da Irlanda,
foste Kostas Papaiaoannou, um grego universal
de Paris, com um pé na Bactriana e o outro em
Delfos,
e, por isso, escrevo em tua memória estes versos,
no metro irregular da sístole e da diástole,
prosódia do coração, que torna breves as sílabas
longas, e longas as breves
versos longos e curtos, como os teus passos
subindo da Pont Neuf ao lion de Belfort, recitando o
poema de Proclus,
versos para seguir, sobre esta página, o rasto das
tuas palavras, que são cabras, que são ménades
saltando à luz da lua num vale de pedra e sólidos
de vidro por elas inventados
enquanto tu falas de Marx e de Teócrito, e ris,
e as vês bailar entre os teus livros e papéis
- é Verão, e estamos num atelier que dá para
um jardinzito no beco Daguerre,
há uma latada, da qual pendem cachos de uvas,
condensações da noite: dentro, dorme um fogo,
tesouros escaldantes, assim seriam os que viu e
tocou Nerval no ouro da trança divina? -
o teu falar caudaloso avança entre obeliscos e
arcos quebrados, inscrições mutiladas, cemitérios de
nomes,
(...)
e tu deténs-te, e olhas, calado, o deus da história:
cabras, ménades e palavras dissipam-se.
(...)
O homem é as suas visões: uma tarde, depois de
uma tormenta, viste, ou sonhaste, ou inventaste, é o
mesmo
(...)
Kostas, entre as cinzas geladas da Europa, eu não
encontrei o ovo da ressurreição:
encontrei, ao pé da cruel Quimera empapada de
sangue, o teu riso de reconciliação.
Octavio Paz, "Kostas", Árvore Adentro, Luís Alves da Costa (trad.), Vega, 1994
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