A verdade histórica, aprenda-o, é que os almuadens eram escolhidos entre os cegos, não por humanitária política de emprego ou encaminhamento profissional fisiologicamente adequado, mas para que não pudessem devassar a intimidade dos pátios e açoteias que, do alto da almádena, em figura. O revisor já não se recorda de como o soube, certamente o terá lido em livro digno de confiança, que o tempo não emendou, por isso pode insistir agora que os almuadens eram cegos, sim senhor. Quase todos. Apenas, quando em tal lhe acontece pensar, não consegue repelir de si uma dúvida, se a esses homens não lhes furariam os olhos lúcidos, como se fazia e talvez se faça ainda aos rouxinóis, para que da luz não conhecessem outra manifestação que uma voz ouvida nas trevas, a sua, ou, porventura, a daquele Outro que não sabe mais que repetir as palavras que vamos inventando, estas com que tentamos dizer tudo, bendição e maldição, até o nome que não terá nunca, inominável.
José Saramago, História do Cerco de Lisboa, Caminho, 2008 (8ª edição).
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