Para os heróis que combatiam em Tróia, a vida não era algo que exigia ser salvo. Nem sequer dispunham de uma palavra para dizer «salvação», a não ser pháos, «luz». Salvação era uma reafirmação passageira de algo que é. Não tencionavam salvar o que existia, nem salvar-se do que existia. O que existia não era susceptível de ser salvo. A vida era insanável, devia ser aceite tal como era, na sua malignidade e no seu esplendor. Só podiam desejar manter-se ainda por algum tempo na crista da vaga, antes de voltarem a precipitar-se na sombra do íngreme abismo. A palavra que mais frequentemente qualificava a morte era aipýs, «íngreme». Morte era a precipitação, mal se ultrapassava o auge da aparição.
Roberto Calasso, As Núpcias de Cadmo e Harmonia*, Maria Jorge Vilar de Figueiredo (trad.), Livros Cotovia, 1990.
*Este livro foi um maravilhoso presente (embora o ande a ler há mil anos). A Ilíada continuará sempre a ser o meu livro número um. Sempre, sempre.
Sem comentários:
Enviar um comentário