sábado, 9 de outubro de 2010

segundo me disseram, para lá das muralhas de atenas



Maçãs nas árvores rasteiras/São duras,/Pequenas demais,
Tardiamente amadurecidas/Por um sol desesperado
Debatendo-se contra a neblina.
H. D. (Hilda Doolittle), «Hermes dos caminhos»
ficou a um canto este prato de uvas
e um resto de vinho esquecido num cântaro
que agora à água da chuva se mistura
fazendo música de relógio
música de ver passar o tempo
tu próprio estás tarde e guardaste

um filme para ver com uma ponta de febre
(expressão que me ensinou ontem josé luís brecht)
duas vozes movendo-se no cinzento e tu remoendo
restos de grãos de café num bolso do casaco
que mais tarde hás-de trincar de amargura
e ensaias a desordem do quarto inundando-se de água
até meio das estantes agora quase que podias
ver tudo com olhar lavado ou dizer

uma palavra sem essa tua nossa
palavra preferida de todas:
uma palavra sem doçura uma forma de falar
bebida no áspero dialecto desse velho
que já morto ainda teima em deitar-se
numa destas pedras brancas ao canto da memória
onde vêm os nossos fantasmas para descansar
para nos deixar de cabeça vazia
sentados nessa cadeira de mãos inertes
o caderno repousando no colo
para mim se importa isso foi sempre o princípio de tudo
porque foi onde comecei por escolher ser livre

o meu velho estende-se na brancura desta pedra
come uvas até se fazer tarde e com os olhos tacteia
com uma ponta de inveja os últimos raios de sol
ainda os há-de procurar provando os figos mirrados
os pés rodopiando enganados por este muro
de folhas de plátano que desde muito longe
e muito cedo nos foi cercando

o verão com pouco viço
vai caminhando para o fim
e não tem já aquela força
que me fazia rodopiar nos seus braços
erguendo-me entre os limoeiros
forçando-me a virar a cabeça
para ao longe ver os pátios das casas
os gatos estendidos ao sol
esgueirando-se entre os telheiros com o cair da tarde

só nós vamos ficando mais jovens
a cada verão que passa
um resto de mar ondulando
a um canto da íris aprisionado
no espaço exíguo de um búzio
com um brando rumor de ira
eu aceito a minha derrota e vou
sem saber por onde tropeçando
em bonecos de madeira que deixei
semeados no escuro a pequena elegia
de um eco de riso breve

que é meu ou era meu
mas que agora disparando se ri de mim ao longe

Tatiana Faia

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