quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Final do canto VI

"Pois isto eu bem sei no espírito e no coração:
virá o dia em que será destruída a sacra Ílion,
assim como Príamo e o povo de Príamo da lança de freixo.
Mas não é tanto o sofrimento futuro dos Troianos que me importa,
nem da própria Hécuba, nem do rei Príamo,
nem dos meus irmãos, que muitos e valentes tombarão
na poeira devido à violência de homens inimigos --
muito mais me importa o teu sofrimento, quando em lágrimas
fores levada por um dos Aqueus vestidos de bronze,
privada da liberdade que vives no dia a dia:
em Argos tecerás ao tear, às ordens de outra mulher;
ou então, contrariada, levarás água da Messeida ou da Hipereia,
pois uma forte necessidade se terá abatido sobre ti.
E alguém assim falará ao ver as tuas lágrimas:
'Esta é a mulher de Heitor, que dos troianos domadores de cavalos
era o melhor guerreiro, quando se combatia em torno de Ilíon.'
Assim falará alguém. E a ti sobrevirá uma dor renovada,
pela falta que te fará um marido como eu para afastar a escravatura.
Mas que a terra amontoada em cima do meu cadáver me esconda,
antes que oiça os teus gritos quando te arrastarem para o cativeiro."

Assim falando, o glorioso Heitor foi para abraçar o seu filho,
mas o menino voltou para o regaço da ama de bela cintura
gritando em voz alta, assarapantado pelo aspecto de seu pai amado
e assustado por causa do bronze e das crinas de cavalo,
que se agitava de modo medonho da parte de cima do elmo.
Então se riram o pai amado e a excelsa mãe:
e logo da cabeça tirou o elmo o glorioso Heitor,
e depo-lo, todo ele coruscante, no chão da casa.
De seguida beijou e abraçou o seu filho amado
e a Zeus e aos outros deuses dirigiu esta oração:

"Ó Zeus e demais deuses, concedei-me que este meu filho
venha a ser como eu, o melhor entre os Troianos; que seja tão
ilustre pela força e que pela autoridade seja rei de Ilíon.
Que de futuro alguém diga 'este é muito melhor que o pai',
ao regressar da guerra. Que traga os despojos sangrentos
do inimigo que matou e que exulte o coração da mãe!"

Assim dizendo, nos braços da esposa amada pôs o filho.
Ela recebeu-o no colo perfumado, sorrindo por entre as lágrimas.
Mas ao aperceber-se como ela reagia, o marido sentiu pena;
e acariciando-a com a mão, falou-lhe pelo nome:

"Mulher maravilhosa, não me entristeças demasiado o coração
Nenhum homem além do destino me precipitará no Hades;
porém digo-te não existir homem algum que à morte tenha fugido,
nem o cobarde, nem o valente, uma vez que tenha nascido."

Homero, Ilíada, Canto VI, vv. 447-489, Frederico Lourenço (trad.), Livros Cotovia, 2005

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