terça-feira, 30 de agosto de 2011

O triunfo do barroco


ISIS

Tragédie en musique en 5 Actes et un Prologue
Représentée par L'Académie Royale de Musique,
au Mois d'Août 1677.

A ópera barroca no tempo do Rei-Sol. A música é de Jean-Baptiste Lully (1632-1687), italiano tornado francês. Teve uma morte barroquíssima: enquanto dirigia o seu espantoso Te Deum, esmagou um dedo do pé com o bastão, como se pode ver na reconstituição a partir do minuto 2:12 deste vídeo (na altura não se dirigia com batutas maricas, não, que aquilo eram homens a sério). A ferida gangrenou, mas Lully recusou que lhe amputassem a perna. Morreu.

A gravação que aqui prantei é da primeira cena da ópera Ísis, e é interpretada pelo agrupamento "Musica Antiqua Köln", dirigido pelo Reinhard Goebel, e serviu de banda sonora ao filme Le Roi Danse, imperdível para os amantes da estética barroca. O texto, assassinado no vídeo, e que reproduzo na sua versão correcta e com a grafia da época, é do libretista Philippe Quinault (1635-1688).


La renommée
C'est luy dont les Dieux ont fait choix
Pour combler le bonheur de l'Empire François,
En vain pour le troubler, tout s'unit, tout conspire,
C'est en vain que l'Envie a ligué tant de roys.
Heureux l'Empire
Qui suit ses lois!

La Renommée, et sa suite, les Rumeurs et les Bruits.
Publions en tous lieux
Du plus grand des héros la valeur triomphante!
Que la Terre et les cieux
Retentissent du bruit de sa gloire éclatante!

As fundações teóricas de toda uma corrente da poética


Ou de outra forma a máxima de Ferlinghetti, If you call yourself a poet, sing it, don't state it.

Dispneia

... o homem portador de rosto com os seus múltiplos odores de pele e de cavidades, com o seu sorriso, estúpido, ou astuto, provocador ou desamparado, com o seu sorriso que até nos momentos da mais extrema abjecção é comovente pelo que contém de divino, que lhe abre o rosto, antes de o riso o voltar a fechar, no temor de que os seus olhos vejam a desumanidade da destruição da criação, o homem abençoado com o olhar, os olhos grandes, os olhos fixos, os olhos de cristal, os olhos escuros, os olhos vivos, desvelando no olhar o seu destino, ele próprio escondido no olhar, o homem portador do destino, condenado pelo destino à vergonha, precisamente pela força do seu olhar, o homem que sabe o que é a vergonha e que tem o dom da falar com a sua voz húmida e desavergonhadamente articulada pelos maxilares, pela língua, pelos lábios, a voz portadora de hálito, a voz portadora da palavra, a voz portadora da comunicação, que provém dele, rude, gordurosa, servil, ameaçadora, móvel e rígida, ofegante, seca, esganiçada, vivente e no entanto sempre capaz de se transfigurar em canção, o homem, esse ente total, milagroso e no entanto horroroso, composto de existência anatómica, de língua, de expressão, de conhecimento e não-conhecimento, de embotamento estúpido, de cálculos de sestércios, de desejos, de enigmas, esta criatura indivisa, mas no entanto dividida em órgãos, em zonas de vida, em substâncias, em átomos, multiplicado uma e outra vez, toda esta multiplicidade da existência, este emaranhado de elementos humanos, nem sequer bem compostos, este matagal de criaturas, terrenas na sua realidade, terrenas como o seu esqueleto de pedra, terrenas como o esqueleto da morte, toda esta confusão de corpos, confusão de membros, confusão de olhos, confusão de vozes, este matagal de semicriação e de inconclusão, com origem num cio ocasional, e brotando continuamente um do outro, indiscriminadamente juntos numa luxúria constantemente renovada, misturando-se, fornicando, entrelaçando-se, ramificando-se cada vez mais para definhar constantemente de modo que, prostrado, caia o que apodreceu, o que secou, o que murchou, esse matagal humano, vivo com os elementos da planta e do animal, este matagal da vida consagrado à morte era isto que acabava de despontar, sob a forma da morte, flutuando, unindo a sua corrente à da morte, ruidosa e silenciosamente;


Hermann Broch, A Morte de Virgílio, Relógio d'Água.

domingo, 28 de agosto de 2011

De antologia



















Diane, 11:30 a.m., February Twenty-fourth. Entering the town of Twin Peaks, five miles south of the Canadian border, twelve miles west of the state line. I've never seen so many trees in my life. As W. C. Fields would say, I'd rather be here than Philadelphia. Fifty-four degrees on a slightly overcast day. Weatherman said rain. If you could get paid that kind of money for being wrong sixty percent of the time, it'd beat working. Mileage is seventy-nine thousand three hundred forty-five, gauge is on reserve, riding on fumes here, I've got to tank up when I get into town. Remind me to tell you how much that is. Lunch was, uh, six dollars and thirty-one cents at the Lamplighter Inn, that's on Highway Two near Lewis Fork. That was a tuna fish sandwich on whole wheat, slice of cherry pie, and a cup of coffee. Damn good food. Diane, if you ever get up this way that cherry pie is worth a stop. Okay. Looks like I'll be meeting up with the, ah, Sheriff Harry S. Truman. Shouldn't be too hard to remember that. He'll be at the Calhoun Memorial Hospital. I guess we're going to go up to intensive care and take a look at that girl that crawled down the railroad tracks off the mountain. When I finish there I'll be checking into a motel. I'm sure the sheriff will be able to recommend a clean place, reasonably priced. That's what I need, a clean place, reasonably priced.

FBI Special Agent Dale Cooper, Twin Peaks, S01, Ep. 1.

sábado, 27 de agosto de 2011

As crianças deviam crescer dentro de grandes bibliotecas particulares

Kien sentiu pena. O rapazito estava a corromper o seu espírito delicado e talvez ávido de leituras com aquela infame literatura de cordel. Anos mais tarde, talvez viesse a ler mais do que um livro infecto apenas por se ter familiarizado com o título desde criança. Como limitar a receptividade dos primeiros anos? Quando uma criança aprende a caminhar e a soletrar, fica à mercê tanto do pavimento de uma rua mal asfaltada como da mercadoria de qualquer pobre desgraçado que - o diabo lá saberá porquê - se dedicou a vender livros. As crianças deviam crescer dentro de grandes bibliotecas particulares. O contacto diário e exclusivo com espíritos sérios, um ambiente intelectual, sombrio e aprazível e um tenaz esforço de adaptação à ordem mais rigorosa, tanto no tempo como no espaço, que melhor forma de ajudar esses seres delicados na sua juventude?

Elias Canetti, Auto-de-Fé
Cavalo de Ferro
Tradução de Luís de Almeida Campos 


The Searchers

Cavalos lançados
A galope.
Uma porta que se abre, uma
Porta que se fecha, uma
Menina erguida na água de um destino,
Exultante,
O tilintar das esporas no ar, furtivo,
Da memória passo a passo, os cavalos
Lançados a galope.
O barulho da carne quando
Parte.

Gil de Carvalho in Poemas com Cinema, Joana Matos Frias et al. (org.) Assírio & Alvim, Lisboa, 2011

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Cidades

digo cidades mas o que quero dizer é sempre, quase sempre invariavelmente, cidade. meia dúzia de ruas às vezes nem sempre nem tanto. levianamente. um lugar ao de leve sem o peso dos pés sobre o coração. à excepção de um ou outro lugar todos os lugares me são um pouco colaterais. vejo isso por exemplo ao projectar-me no futuro (tal como o presente o outro tempo que não existe - segundo saramago). a minha imagem para o futuro. colaterais. isto é. o que tenho em mente não são os lugares mas as pessoas. as pessoas que me pertencem - admitindo que existem aqueles que são definitivamente nossos (quem está no lugar que é olhos fechados no fim do dia). definitivamente meu: mão fechando-se tenaz sobre o braço. corpo projectado para a frente movimento travado. um lugar que não vai a lugar nenhum. isto importa-me nos lugares, como acontece com toda a gente, o que lá acontece não o espaço (excepção feita para certa esquina que em paros está à minha espera, um dédalo de oliveiras perdido na tarde - o lugar em que pensas quando pensas em silêncio), a história que restou assente sobre a ruína. schliemman não foi à anatólia para ver cacos, pedaços de pedra.

um pouco de outro modo como a anedota que suetónio conta sobre augusto (então octaviano, ou tátá jr. como lhe chamaria antónio - o do roma ou o que em roma fora uma bela cabeça de homem - para usar uma expressão utilizada pelo meu professor de cultura romana ao mostrar o slide com a estátua do tipo - pelo menos antes de a perder) que entrando em alexandria depois de áccio pede que lhe deixem ver o túmulo de alexandre

e os alexandrinos

conxstreza conxstreza meu general

que não era, ele não o era general - toda a gente sabia que em batalhas marítimas e terrestres a tendência geral era para lhe dar o enjoo, o nó na tripa, para a guerra havia marco
o louro marco - vipsânio agripa - o seu mercúcio se isto fosse shakespeare

mas como dizia

os gregos levam-no obsequiosamente à necrópole e mostram-lhe alexandre (o que dele restava)
e há um marmelo (ou vários - não sei se a história nos diz quantos) que lhe diz
meu príncipe (não faço ideia se ele por esta altura tinha o título de princeps senatu mas soa bem para efeitos de anedocta), meu príncipe, não queres agora ver os túmulos dos ptolemeus (nunca ptolomeus, como explicou uma vez RF, logo antes de começar a falar de sociedade e política clássica - ptolomeu era o geógrafo da idade média)?
ao que augusto (octaviano na altura) responde
que eu vim aqui para olhar para um Rei não para topar com cadáveres

e assim se iniciou todo um novo capítulo na história da diplomacia greco-romana

igual em toda a parte o que se destrói. ou nada disto. como era, aquela linha de ajf em que ele falava das cidades que nos chegam durante as tempestades. as cidades que nos chegam durante as tempestades. é uma expressão brutal. depois de escrever isto a tua carreira de escritor até pode ir para o raio. até podes nunca a ter tido e não a ter depois. cidades não que nos ocorrem. que nos chegam. o que ias dizer. cidade.

Roaide-vos [sic] de inveja.

O livro.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

A Queda do Império Romano

segundo Anthony Mann

Por vezes domina-nos uma enganadora presença diante de um dos nossos poemas
e quase nos atrevemos a pensar
que eles são como bocados de estátuas
que, mesmo fragmentados, no tempo ainda perduram.
E no entanto nada há de mais dúbio.
Mesmo o adivinho
que remexe nas entranhas do pombo,
à procura do segredo do destino
- e da expiação de toda a sabedoria -,
serve-se da cegueira
para mais facilmente iludir os espíritos.
Lá fora, na noite, o vento condensa o frio e enquanto a neve tomba
as legiões desfilam, em silêncio diante da pira que em breve se extingue.
Mais tarde, junto ao templo, o Império será leiloado nas escadarias.
Equilibrar-se-ão as ofertas dos melhores filhos de família.

Fernando Guerreiro in Poemas com Cinema, Joana Matos Frias et al. (org.) Assírio & Alvim, Lisboa, 2011

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Nota bene: isto não é um ensaio.

Se Sacheverell Sitwell pode dizer (no primeiro verso do The Farnese Hercules) que heroes out of music born, se é possível contrapor uma negativa a qualquer afirmativa, então também é possível dizer o contrário, que os heróis morrem de música. Isto é, do que primordialmente, dessa maneira grega, é música - poesia. Ou puxar a negatividade um pouco mais, dizer, os anti-heróis morrem de música. Os Apolos nascem à luz da música. Os Dionisos cumprem-se na música que morre, não só morrem de música, são a morte pela música, porque dizem essa possibilidade. Os Apolos são (isso - apolíneos) belos, altos, de largos ombros, de uma sensualidade luminosa, uma espécie de Leonard Cohens. Os Dionisos passam rápido, são inexplicavelmente sedutores, marginais, deixam-nos encandeados na luz, vagamente estonteados e desaparecem espectacularmente em seguida, not with a bang, são Tom Waitses.

***

Mas se Sacheverell Sitwell pode dizer isto, os heróis nascem de música, que faremos com os Aquiles? Que ao mesmo tempo, como numa moeda de duas faces, nascem e morrem a partir de música. Porque é o canto que os faz e ao mesmo tempo os desfaz. Aquiles para mim nasce tardiamente, naquele passo do canto IX em que ele está para lá na tenda a coçar a micose com a harpa de um lado, o Menecida do outro e vem de lá Ulisses e ele diz-lhe (uma coisa que talvez só Yeats viria mais tarde a imitar num poema chamado No Second Troy), ele diz-lhe,

porque raio haviam os Gregos de vir das costas da Hélade, não tinham eles mulheres que chegassem por lá, tinham de vir atrás de uma só? Também eu tinha uma mulher e amava-a, embora (topem a conotação sexual implícita) ela fosse só a captiva da minha lança.

E não me lembro do que lhe responde Ulisses, porque um tipo quando ouve uma destas deve é engolir em seco, mas era um sofista o Ulisses e palheta não lhe faltava, pelo que Aquiles não deve ter ficado sem resposta, mas como estava a dizer, Aquiles, para mim, começa aqui. Isto acontece porque (esta é a resposta fácil, mas não me apetece escavar agora isto e isto é um post, keep it simple) quando Aquiles diz isto o que nós temos é o corte definitivo de um laço, o laço com os Gregos, com a pólis a que ele pertence, i.e., aquele maralhal todo que está acampado nas costas de Tróia. E isto é dionísiaco, porque a hybris tem de ser dionísiaca ou não é hybris, qualquer coisa tão forte e tão fora do nosso controlo que convoca essa coisa que Ésquilo viria a definir mais tarde quando numa tragédia perdida um seu Aquiles aparece a dizer: sinto-me como a águia que vê que a seta que a trespassa traz uma pena da sua própria asa (Achilles commenting live on the death of Patroclus). Onde cessa de haver um laço há uma morte implícita. E isto é sempre. Em tudo. Mas já estou a divagar demais. É um pouco mais simples. Aquiles nasce de música por esse velho tema do ficar famosa pelo canto. O que ele é, é feito de música. Ele - ele de facto - morre de música porque é preciso que ele seja uma breuis lux para ser digno de canto. Mas ele, no cerne da Ilíada, de harpa em mãos a cantar, é uma forma de atónito, o indizível a afagar-te a testa, a gozar contigo. Que disse Homero quando disse isso é outra coisa ainda.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Passinho de dança

Snow

The room was suddenly rich and the great bay-window was
Spawning snow and pink roses against it
Soundlessly collateral and incompatible:
World is suddener than we fancy it.

World is crazier and more of it than we think,
Incorrigibly plural. I peel and portion
A tangerine and spit the pips and feel
The drunkenness of things being various.

And the fire flames with a bubbling sound for world
Is more spiteful and gay than one supposes –
On the tongue on the eyes on the ears in the palms of one's hands –
There is more than glass between the snow and the huge roses.


Louis Macneice, in The Faber Book of Modern Verse, Michael Roberts (ed.), Faber & Faber, 1936 (1ª ed.).

domingo, 21 de agosto de 2011

"Walk the Line" de James Mangold, 2005

André Roubliev

Porque
O vento cobre de imagens os telhados.
O tempo das colheitas
Já passou, vem a morte, André Roubliev
Mordendo os cataventos, espera-nos
Um cavalo
Tão fértil como a chuva sobre os ícones.

Gil de Carvalho, Viagens, Assíro & Alvim, Lisboa, 2008 apud AAVV, Poemas com Cinema, Assírio & Alvim, Lisboa, 2011

Poison


sexta-feira, 19 de agosto de 2011

To a steam roller

The illustration
is nothing to you without the application.
You lack half wit. You crush all the particles down
into close conformity, and then walk back and forth on them.

Sparkling chips of rock
are crushed down to the level of the parent block.
Were not 'impersonal judgment in aesthetic
matters, a metaphysical impossibility,' you

might fairly achieve
it. As for butterflies, I can hardly conceive
of one's attending upon you, but to question
the congruence of the complement is vain, if it exists.

Marianne Moore, in The Faber Book of Modern Verse, Michael Roberts (ed.), Faber & Faber, 1936 (1ª ed.).

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Kiva

Dar uma ajuda.

Macro, Phlebas

Há verdadeiramente dias destes em que me arrasto de cansaço. Um olhar parado pousando em todas as coisas. É Agosto. Para dizer que morre de calor, o gato põe-se de barriga para cima, catatónicas patas para o ar, língua de fora. A pior coisa na passagem definitiva de um trabalho sobre historiografia para um trabalho sobre literatura, sobre mitologia, é a noção de que as personae sobre quem trabalho deixam de existir. As probabilidades de algum nome escrito na pedra me vir dizer que estiveram vivas são consideravelmente menores. Visito as minhas últimas notas, estapafúrdias de tão pormenorizadas, sobre o imenso, interminável texto da Embaixada. Uma delas diz que Macro, prefeito do Pretório em Roma no ano de 38, anos antes prefeito das Vigílias, morreu antes de ser acusado formalmente de maiestas (traição ao estado, na época imperial era uma acusação que dava ao imperador o pretexto para se desfazer de rivais em potência). Como sabemos isto? Ele doa à sua cidade a soma para construção de um anfiteatro. Uma cidadezinha chamada Alba Fucens. No anfiteatro fica uma inscrição que nos diz que se pagou a obra por sua disposição testamentária. Se ele doou o dinheiro ainda não tinha sido acusado formalmente de nada. É suicidado nesse ano. Provavelmente quê? Outubro, Novembro, no máximo. Muito provavelmente em meados de Outubro. Os seus bens não foram penhorados e vendidos em hasta pública, logo, é altamente improvável que ele tivesse sido acusado fosse do que fosse. Macro que chegou a puxar os cordelinhos na corte de Tibério. De quem Suetónio nos diz que era tão ambicioso que chegou a ceder os favores da sua esposa a Calígula de modo a aumentar a sua influência junto do jovem imperador. Qualquer coisa nisto tudo que me lembra T. S. Eliot: Gentile or Jew, o you who turn the wheel and look to windward, consider Phlebas, who was once tall and handsome like you.
A pior coisa de se passar da historiografia para a literatura é também a melhor.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Bavarian Gentians

Not every man has gentians in his house
in Soft September, at slow, Sad Michaelmas.

Bavarian gentians, big and dark, only dark
darkening the daytime torchlike with the smoking blueness of Pluto's
gloom,
ribbed and torchlike, with their blaze of darkness spread blue
down flattening into points, flattened under the sweep of white day
torch-flower of the blue-smoking darkness, Pluto's dark-blue daze,
black lamps from the halls of Dis, burning dark blue,
giving off darkness, blue darkness, as Demeter's pale lamps give off
light,
lead me then, lead me the way.

Reach me a gentian, give me a torch
let me guide myself with the blue, forked torch of this flower
down the darker and darker stairs, where blue is darkened on blueness.
even where Persephone goes, just now, from the frosted September
to the sightless realm where darkness was awake upon the dark
and Persephone herself is but a voice
or a darkness invisible enfolded in the deeper dark
of the arms Plutonic, and pierced with the passion of dense gloom,
among the splendor of torches of darkness, shedding darkness on the
lost bride and groom.


D. H. Lawrence in The Faber Book of Modern Verse, Michael Roberts (ed.), Faber & Faber, 1936 (1ª ed.).

domingo, 14 de agosto de 2011

Printemps moisi

Car il est toujours prudent de dissimuler. Avouer que l'on n'est occupée qu'à se souvenir, c'est de quoi blesser un innocent. Et comment ferai-je croire à celui-ci, qui m'interroge, que passé soixante dix ans je suis en train de regretter, avec une force et une intolérance si têtues, une saison, un buisson, un ciel, un pays, une possession sans mesure et inaliénable? Retirons-nous donc, mes défunts printemps et moi, derrière les gros premiers plans de ma fausse turbulence, puis gagnons l'abri de ma patience authentique.
- Mais tu ne souffres pas davantage de ta jambe?
- Pas question. Je réfléchis!
Je réfléchis. C'est beaucoup dire, mais c'est dit avec assez d'emphase comique pour que se rassure celui qui s'inquiète. Faut-il vraiment donner le nom de pensées à une promenade, à une contemplation sans buts ni desseins, à une sorte de virtuosité du souvenir que je suis seule à ne pas juger vaine? Je pars, je m'élance sur un chemin autrefois familier, à la vitesse de mon ancien pas, je vise le gros chêne difforme, la ferme pauvre où le cidre et le beurre en tartines m'étaient généreusement mesurés.

Colette, L'étoile vesper, Editions du Milieu du Monde, 1946.

Living

Slow bleak awakening from the morning dream
Brings me in contact with the sudden day.
I am alive – this I.
I let my fingers move along my body.
Realization warns them, and my nerves
Prepare their rapid messages and signals.
While Memory begins recording, coding,
Repeating; all the time Imagination
Mutters: You'll only die.

Here's a new day. O Pendulum move slowly!
My usual clothes are waiting on their peg.
I am alive – this I.
And in a moment Habit, like a crane,
Will bow its neck and dip its pulleyed cable,
Gathering me, my body, and our garment,
And swing me forth, oblivious of my question,
Into the daylight – why?

I think of all the others who awaken,
And wonder if they go to meet the morning
More valiantly than I;
Nor asking of this Day they will be living:
What have I done that I should be alive?
O, can I not forget that I am living?
How shall I reconcile the two conditions:
Living, and yet – to die?

Between the curtains the autumnal sunlight
With lean and yellow finger points me out;
The clock moans: Why? Why? Why?
But suddenly, as if without a reason,
Heart, Brain, and Body, and Imagination
All gather in tumultuous joy together,
Running like children down the path of morning
To fields where they can play without a quarrel:
A country I'd forgotten, but remember,
And welcome with a cry.

O cool glad pasture; living tree, tall corn,
Great cliff, or languid sloping sand, cold sea,
Waves; rivers curving; you, eternal flowers,
Give me content, while I can think of you:
Give me your living breath!
Back to your rampart, Death.

Harold Monro in The Faber Book of Modern Verse, Michael Roberts (ed.), Faber & Faber, 1936 (1ª ed.).

sábado, 13 de agosto de 2011

Na estrada


Manifestações de júbilo por toda a China

Descubra aqui porquê. E desta vez não foi o Futre.

Ash Wednesday

I

Because I do not hope to turn again
Because I do not hope
Because I do not hope to turn
Desiring this man's gift and that man's scope
I no longer strive to strive towards such things
(Why should the agèd eagle stretch its wings?)
Why should I mourn
The vanished power of the usual reign?

Because I do not hope to know
The infirm glory of the positive hour
Because I do not think
Because I know I shall not know
The one veritable transitory power
Because I cannot drink
There, where trees flower, and springs flow, for there is
nothing again

Because I know that time is always time
And place is always and only place
And what is actual is actual only for one time
And only for one place
I rejoice that things are as they are and
I renounce the blessèd face
And renounce the voice
Because I cannot hope to turn again
Consequently I rejoice, having to construct something
Upon which to rejoice

And pray to God to have mercy upon us
And pray that I may forget
These matters that with myself I too much discuss
Too much explain
Because I do not hope to turn again
Let these words answer
For what is done, not to be done again
May the judgement not be too heavy upon us

Because these wings are no longer wings to fly
But merely vans to beat the air
The air which is now thoroughly small and dry
Smaller and dryer than the will
Teach us to care and not to care Teach us to sit still.

Pray for us sinners now and at the hour of our death
Pray for us now and at the hour of our death.

T.S. Eliot in The Faber Book of Modern Verse, Michael Roberts (ed.), Faber & Faber, 1936 (1ª ed.).

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Óculos

Usei os mesmos óculos durante mil dias. Pousava-os na estante ao lado da cama no fim do dia, inevitavelmente tornava a tactear à procura deles de manhã. Esqueci-me deles talvez em dezenas de sítios, segui as mais idiotas pistas mentais para os recuperar. Os meus expedientes teriam causado o teu riso. Comecei a usá-los por causa de um homem chamado Anatole, estou certa disso. Uma vez, uma única, deixei-os para trás em fuga de um sítio. Tive de voltar em pontas de pés para os ir buscar. Nos primeiros dias pesavam-me no nariz, uma sensação de desconforto equilibrada pelo facto de pela primeira vez em meses ver claramente as coisas em meu redor. Levava a caixa em que me foram vendidos para toda a parte. Com o tempo deixei-me disso. Através deles vi talvez uma vintena de cidades, os dois gatos, o amado, o fundo da rua sempre ligeiramente desfocado, o Jardim das Delícias de Bosch no Prado, as letras de tamanho médio no cais do outro lado do metropolitano. Não os tirava sequer para jogar ténis. No primeiro dia em que os usei, pude finalmente ver distintamente a cara da professora de literatura latina, beleza famosa entre os alunos de clássicas. Conformei-me à ideia de que eram inevitáveis no dia em que, olhando para o fundo do corredor, confundi o Edgar com a professora de literatura portuguesa contemporânea. Às vezes tirava-os só para olhar em meu redor e ver tudo desfocado. Nos primeiros dias tinha receio de embater contra qualquer coisa com eles na cara, sabes, como quando vais a andar na rua distraído e, bang, em cheio num poste. Com eles postos na cara vi Notorious, Fanny Och Alexander, Cenas de um Casamento, Pierrot le Fou, Ladrões de Bicicletas, centenas de filmes. Hoje partiram-se. Como se fossem qualquer outro objecto vulgar vulgar vulgar, feito de ferro e vidro, que terei de deitar fora antes de se tornar lixo em qualquer canto de uma gaveta.

Aimee Mann, "Amateur"

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Maria Andresen, Dies Irae I

A natureza é escassa e o sol quando brilha é baço;
é furtiva por aqui a alegria
quando quase sem aviso nos visita

há um foco de luz a desenhar o mundo

a luz fría, a luz do desassombro:
porque a morte de Herlofs Marthe
soa e contagia

vai manhã alta no coração de Anne
e altas são as chamas do castigo
— aqui o sol é frio —
assombra-nos como um canto de rotina
Herlofs Marthe e o seu dom pressagiante

a sentença avançará com a sua luz contida
com a sua faca propícia
a sentença avançará na sua forma fria

só Anne convoca o amor, o venenoso amor
e com Martin assim caminha sobre pedras —
ao longe, o som do machado corta frio o ar

Maria Andresen, Lugares 3, Relógio d'Água, Lisboa, 2010 apud AAVV, Poemas com Cinema, Assírio & Alvim, Lisboa, 2011

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Salt and Oil

Three young men in dirty work clothes
on their way home or to a bar
in the late morning. This is not
a photograph, it is a moment
in the daily life of the world,
a moment that will pass into
the unwritten biography
of your city or my city
unless it is frozen in the fine print
of our eyes. I turn away
to read the morning paper and lose
the words. I go into the streets
for an hour or more, walking slowly
for even a man of my age. I buy
an apple but do not eat it.
The old woman who sells it remarks
on its texture and tartness, she
laughs and the veins of her cheeks brown.
I stare into the river while time
refuses to move. Meanwhile the three
begin to fade, giving up
their names and voices, their auras
of smoke and grease, their acrid bouquets.
We shall name one to preserve him,
we shall name him Salt, the tall blond
whose wrists hurt, who is holding back
something, curses or tears, and shaking
out the exhaustion, his blue eyes
swollen with sleeplessness, his words
blasted on the horn of his breath.
We could go into the cathedral
of his boyhood and recapture
the voices that were his, we could
reclaim him from the brink of fire,
but then we would lose the other,
the one we call Oil, for Oil
broods in the tiny crevices
between then and now, Oil survives
in the locked archives of the clock.
His one letter proclaims, “My Dear
President, I would rather not . . .”
One arm draped across the back
of Salt, his mouth wide with laughter,
the black hair blurring the forehead,
he extends his right hand, open
and filthy to take rusted chains,
frozen bearings, the scarred hands
of strangers, there is nothing
he will not take. These two are not
brothers, the one tall and solemn,
the long Slavic nose, the pale eyes,
the puffed mouth offended by the press
of traffic, while the twin is glad
to be with us on this late morning
in paradise. If you asked him,
“Do you calm the roiling waters?”
he would smile and shake his great head,
unsure of your meaning. If you asked
the sources of his glee he would shrug
his thick shoulders and roll his eyes
upward to where the turning leaves
take the wind, and the gray city birds
dart toward their prey, and flat clouds
pencil their obscure testaments
on the air. For a moment
the energy that makes them who
they are shatters the noon’s light
into our eyes, and when we see
again they are gone and the street
is quiet, the day passing into
evening, and this is autumn
in the present year. “The third man,”
you ask, “who was the third man
in the photograph?” There is no
photograph, no mystery,
only Salt and Oil
in the daily round of the world,
three young men in dirty work clothes
on their way under a halo
of torn clouds and famished city birds.
There is smoke and grease, there is
the wrist’s exhaustion, there is laughter,
there is the letter seized in the clock
and the apple’s tang, the river
sliding along its banks, darker
now than the sky descending
a last time to scatter its diamonds
into these black waters that contain
the day that passed, the night to come.

Philip Levine (a.k.a., o novo poet laureate americano) in The Mercy, Alfred A. Knopf, 1999. Gamado ao blogue do The New York Times. Este poema é tudo o que um poema deve ser.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Conversion

Lighthearted I walked into the
valley wood
In the time of hyacinths,
Till beauty like a scented cloth
Cast over, stifled me. I was bound
Motionless and faint of breath
By loveliness that is her own eunuch.

Now pass I the final river
Ignominiously, in a sack, without a sound,
As any peeping Turk to the Bosphorous.

T. E. Hulme, in The Faber Book of Modern Verse, Michael Roberts (ed.), Faber & Faber, 1936 (1ª ed.).

domingo, 7 de agosto de 2011

Para ler

http://senhor-teste.blogspot.com/

Livros e realidade

Burn

...they rushed down the street together digging everything in the early way they had which was later now become so much sadder and perceptive.. but then they danced down the street like dingldodies and I shambled after as usual as I've been doing all my life after people that interest me, because the only people that interest me are the mad ones, the ones that are mad to live, mad to talk, desirous of everything at the same time, the ones that never yawn or say a common place thing.. but burn, burn, burn like roman candles across the night.

Jack Kerouac, On The Road: The Original Scroll, Penguin Books, 2008

sábado, 6 de agosto de 2011

Sem nome #4

         pronunciando uma única ocasião e ele a julgar que imensas, a estrangeira loira constantemente a partir, o pingo no sapato
         - Se conseguíssemos adivinhar o que lhe vai na cabeça
         e não conseguiam claro, nunca viram a estrangeira loira nem o afinador e a dúvida sobre se ele os viu ou os criou apenas, nenhuma visita no quarto que o distraísse de si, o pingo no sapato
         - As pessoas hão-de permanecer um mistério
         e mistério nenhum, as pessoas idênticas aos besouros e ás vacas, os besouros queimam-se na lanterna do alpendre e as vacas tremem uma tarde ou duas, tombam tremendo, desistem das tremuras, enterram-se e só então nos espantamos que tão grandes, moem não erva, paciência, a erva um disfarce, tal como me alimento de paciência hoje, se necessitasse de um braço não tinha, de uma perna não havia mas o pulso continuava a empurrá-lo para diante sem que existisse um adiante, existia a parede a cada momento mais próxima e nada atrás dela salvo a avó
         - O que tu emagraceste

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Para não dizerem que não alimento os miúdos com cultura clássica

For Anne Gregory

"Never shall a young man,

Thrown into despair

By those great honey-coloured

Ramparts at your ear,

Love you for yourself alone

And not your yellow hair."


"But I can get a hair-dye

And set such colour there,

Brown, or black, or carrot,

That young men in despair

May love me for myself alone

And not my yellow hair."


W. B. Yeats, in The Faber Book of Modern Verse, Michael Roberts (ed.), Faber & Faber, 1936 (1ª ed.).

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Tens de ver isto


Howl de Rob Epstein e Jeffrey Friedman, 2010.

Byzanthium

The unpurged images of day recede;
The Emperor's drunken soldiery are abed;
Night resonance recedes, night walkers' song
After great cathedral gong;
A starlit or a moonlit dome disdains
All that man is,
All mere complexities,
The fury and the mire of human veins.

Before me floats an image, man or shade,
Shade more than man, more image than a shade;
For Hades' bobbin bound in mummy-cloth
May unwind the winding path;
A mouth that has no moisture and no breath
Breathless mouths may summon;
I hail the superhuman;
I call it death-in-life and life-in-death.

Miracle, bird or golden handiwork,
More miracle than bird or handiwork,
Planted on the star-lit golden bough,
Can like the cocks of Hades crow,
Or, by the moon embittered, scorn aloud
In glory of changeless metal
Common bird or petal
And all complexities of mire or blood.

At midnight on the Emperor's pavement flit
Flames that no faggot feeds, nor steel has lit,
Nor storm disturbs, flames begotten of flame,
Where blood-begotten spirits come
And all complexities of fury leave,
Dying into a dance,
An agony of trance,
An agony of flame that cannot singe a sleeve.

Astraddle on the dolphin's mire and blood,
Spirit after Spirit! The smithies break the flood.
The golden smithies of the Emperor!
Marbles of the dancing floor
Break bitter furies of complexity,
Those images that yet
Fresh images beget,
That dolphin-torn, that gong-tormented sea.

1930

W. B. Yeats, in The Faber Book of Modern Verse, Michael Roberts (ed.), Faber & Faber, 1936 (1ª ed.).

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Não sei já falei disto

Há uns meses atrás, na defesa de tese de uma amiga, cujo o tema era qualquer coisa como A Oração no Tratado das Bençãos do Talmude da Babilónia, parte do público foi transportado para o que pode ser descrito de maneira idiota (mas eficaz para efeitos de entendimento da coisa) um momento Disney, quando a minha amiga conta de como Deus criou as letras da Torah, que eram criaturas vivas e preexistentes à criação. Daí toda uma classe de estudiosos ter dedicado a vida à conservação do texto e, para que nenhuma letra perecesse, todas eram contadas. Acho que já falei disto aqui. Há pouco apercebi-me que, para mim, a representação mental que mais se aproxima dessa história é qualquer coisa como isto: