... o homem portador de rosto com os seus múltiplos odores de pele e de cavidades, com o seu sorriso, estúpido, ou astuto, provocador ou desamparado, com o seu sorriso que até nos momentos da mais extrema abjecção é comovente pelo que contém de divino, que lhe abre o rosto, antes de o riso o voltar a fechar, no temor de que os seus olhos vejam a desumanidade da destruição da criação, o homem abençoado com o olhar, os olhos grandes, os olhos fixos, os olhos de cristal, os olhos escuros, os olhos vivos, desvelando no olhar o seu destino, ele próprio escondido no olhar, o homem portador do destino, condenado pelo destino à vergonha, precisamente pela força do seu olhar, o homem que sabe o que é a vergonha e que tem o dom da falar com a sua voz húmida e desavergonhadamente articulada pelos maxilares, pela língua, pelos lábios, a voz portadora de hálito, a voz portadora da palavra, a voz portadora da comunicação, que provém dele, rude, gordurosa, servil, ameaçadora, móvel e rígida, ofegante, seca, esganiçada, vivente e no entanto sempre capaz de se transfigurar em canção, o homem, esse ente total, milagroso e no entanto horroroso, composto de existência anatómica, de língua, de expressão, de conhecimento e não-conhecimento, de embotamento estúpido, de cálculos de sestércios, de desejos, de enigmas, esta criatura indivisa, mas no entanto dividida em órgãos, em zonas de vida, em substâncias, em átomos, multiplicado uma e outra vez, toda esta multiplicidade da existência, este emaranhado de elementos humanos, nem sequer bem compostos, este matagal de criaturas, terrenas na sua realidade, terrenas como o seu esqueleto de pedra, terrenas como o esqueleto da morte, toda esta confusão de corpos, confusão de membros, confusão de olhos, confusão de vozes, este matagal de semicriação e de inconclusão, com origem num cio ocasional, e brotando continuamente um do outro, indiscriminadamente juntos numa luxúria constantemente renovada, misturando-se, fornicando, entrelaçando-se, ramificando-se cada vez mais para definhar constantemente de modo que, prostrado, caia o que apodreceu, o que secou, o que murchou, esse matagal humano, vivo com os elementos da planta e do animal, este matagal da vida consagrado à morte era isto que acabava de despontar, sob a forma da morte, flutuando, unindo a sua corrente à da morte, ruidosa e silenciosamente;
Mostrar mensagens com a etiqueta A Morte de Virgílio. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta A Morte de Virgílio. Mostrar todas as mensagens
terça-feira, 30 de agosto de 2011
quarta-feira, 5 de agosto de 2009
Hermann Broch, A Morte de Virgílio

Leves e de um azul metálico, movidas por uma brisa contrária suave, quase imperceptível, as ondas do Mar Adriático rolavam ao encontro da armada imperial, quando esta, tendo à esquerda as colinas rasas e cada vez mais próximas da costa calabresa, se dirigia para o porto de Brindisi… I, p. 12
…mas, quanto mais ele o envolvia, quanto mais ele penetrava nesse ondeante som e por ele o envolvia, quanto mais ele penetrava nesse ondeante som e por ele era perpassado, tanto mais inacessível e grandioso, tanto mais poderoso e esquivo se tornava o Verbo, um mar pairando, um fogo pairando, pesado como o mar e leve como o mar, mas sempre Verbo: não era capaz de o reter, e não o devia reter; o Verbo tornava-se para ele inconcebível e inexprimível pois estava para lá da linguagem. II, p.277
A Morte de Virgílio é para mim uma paixão recente e como tal é com timidez e incerteza das formas que a ela me refiro, sem ter por bastão uma bibliografia crítica, movido por impressões veementes e uma grande gratidão.
A obra toma como tema um momento histórico determinado: a chegada do poeta Vergílio a Brindisi em 20 de Setembro de 19 a.C., após um périplo pela Hélade para recolher material para a Eneida, prostrado, até ao momento da sua morte, no dia seguinte. A figura do poeta moribundo é o ponto de convergência do discurso de Broch, discurso lírico, em que prosa e verso se confundem, uma sucessão imagética torrencial, em que uma imagem parece invocar outra, que ocorre naturalmente, ainda que inesperada na sua pungência. Os dois planos discursivos – o da narrativa objectiva, onde padece o poeta moribundo, e o do discurso lírico – parecem ambiguamente metáforas recíprocas, continuamente interseccionados um pelo o outro, amiúde convergindo num só: luz e sombra uma contra a outra, em que a luz é indistinta da sombra, onde luz e sombra são unas ainda que de diferente natureza. Poderíamos falar de preocupações (ou obsessões) da obra: o dualismo verdade-mentira, a relação da criação literária com ele, o amor (cristão) como valor absoluto da existência, o alcance da indagação racional-filosófica em oposição ao da intuitivo-poética, numa clara preocupação epistemológica constante ao autor durante toda a sua vida… Mas uma formulação destas poderia fazer pensar num mero pretexto narrativo sobre o qual o autor-filósofo faz doutrina à guisa de exemplo, o que não podia estar mais afastado da obra, que se ergue em sinestesia sinfónica, em que os temas vão e voltam, difusos, como um Leit motiv, em constante variação.
A obra divide-se em dois volumes e em quatro capítulos, tomando cada um deles o nome de um elemento. Inicia sob o signo da água: das águas que trazem Vergílio a Brindisi, a sua viagem não finda com o aportar da embarcação: tem ainda de atravessar o mar tumultuoso da multidão apinhada em redor de Augusto, tem que vencer a torrente da chusma, dos insultos, prostrado num catre, até alcançar o palácio. O fogo é o elemento da noite febril, da noite de insónias, onde se avistam três vultos na praça, onde se decide queimar a Eneida, obra poética perfeita, logo infinitamente falsa, inimiga da verdade. O terceiro capítulo, “Terra”, devolve Vergílio ao mundo dos homens: a visita do médico, de Vário e Tuca (os amigos próximos que mais tarde viriam a ser os editores da Eneida), de Augusto, a revisão do testamento e por fim o abandono do elemento, a morte, ocupam o capítulo. O capítulo final, “O Éter”, corresponde à “apoteose” do poeta, à contemplação da machina mundi.
Mas um breve resumo da acção não se aproxima sequer de envolver a grandiosidade e beleza da obra. Em constante luta contra a palavra, contra o limite da palavra, em busca de um prado de significação na orla da palavra onde fundar a obra, o autor continuamente luta contra os limites naturais da narrativa e contra as categorias lógicas tradicionais, tornando, ainda mais, a obra só comunicável por uma leitura atenta (e releitura e mais releitura…), um desafio contínuo para o leitor.
Hermann Broch, A Morte de Virgílio, Relógio d’Água, Lisboa, Maria Adélia Silva Melo(trad.), s.d.
Subscrever:
Mensagens (Atom)