terça-feira, 30 de agosto de 2011

Dispneia

... o homem portador de rosto com os seus múltiplos odores de pele e de cavidades, com o seu sorriso, estúpido, ou astuto, provocador ou desamparado, com o seu sorriso que até nos momentos da mais extrema abjecção é comovente pelo que contém de divino, que lhe abre o rosto, antes de o riso o voltar a fechar, no temor de que os seus olhos vejam a desumanidade da destruição da criação, o homem abençoado com o olhar, os olhos grandes, os olhos fixos, os olhos de cristal, os olhos escuros, os olhos vivos, desvelando no olhar o seu destino, ele próprio escondido no olhar, o homem portador do destino, condenado pelo destino à vergonha, precisamente pela força do seu olhar, o homem que sabe o que é a vergonha e que tem o dom da falar com a sua voz húmida e desavergonhadamente articulada pelos maxilares, pela língua, pelos lábios, a voz portadora de hálito, a voz portadora da palavra, a voz portadora da comunicação, que provém dele, rude, gordurosa, servil, ameaçadora, móvel e rígida, ofegante, seca, esganiçada, vivente e no entanto sempre capaz de se transfigurar em canção, o homem, esse ente total, milagroso e no entanto horroroso, composto de existência anatómica, de língua, de expressão, de conhecimento e não-conhecimento, de embotamento estúpido, de cálculos de sestércios, de desejos, de enigmas, esta criatura indivisa, mas no entanto dividida em órgãos, em zonas de vida, em substâncias, em átomos, multiplicado uma e outra vez, toda esta multiplicidade da existência, este emaranhado de elementos humanos, nem sequer bem compostos, este matagal de criaturas, terrenas na sua realidade, terrenas como o seu esqueleto de pedra, terrenas como o esqueleto da morte, toda esta confusão de corpos, confusão de membros, confusão de olhos, confusão de vozes, este matagal de semicriação e de inconclusão, com origem num cio ocasional, e brotando continuamente um do outro, indiscriminadamente juntos numa luxúria constantemente renovada, misturando-se, fornicando, entrelaçando-se, ramificando-se cada vez mais para definhar constantemente de modo que, prostrado, caia o que apodreceu, o que secou, o que murchou, esse matagal humano, vivo com os elementos da planta e do animal, este matagal da vida consagrado à morte era isto que acabava de despontar, sob a forma da morte, flutuando, unindo a sua corrente à da morte, ruidosa e silenciosamente;


Hermann Broch, A Morte de Virgílio, Relógio d'Água.

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