sábado, 27 de março de 2010

Rerum Vulgarium Fragmenta (1.ª Versão)

1.
um muro baixo e sujo ao longo de março
correndo pelas praias de handaye
ou a velha que leva o marido curvado pela mão
os cabelos vermelhos da rapariga
uma casa baixa e caiada
ribatejana no pino do verão e demasiado
próxima do sangue à hora da canícula
um bilhete de comboio para madrid
o lugar onde um homem
há muitos anos atrás escreveu um poema
para uma mulher chamada muriel
um quarto sobre a cidade
com uma enorme janela rasgada na parede
o barulho de raparigas cantando entre pássaros
homero e a sua voz feita de bronze e freixo
um verso de álcman esquecido nas folhas de um livro roubado
o ritmo do hexâmetro tacteando a casa fechada
coisas tão antigas como o assomar do corpo indeciso
junto ao umbral – a mulher precipitando-se no choro
a distância de uma manhã sobre o pacífico
um bilhete de autocarro no bolso
paris milão trieste três dias
os lugares onde não estive onde não estou onde não estarei
o rapaz indefeso que entre caixas de madeira
me estende uma romã e continuamente chora
um choro de sépia na fotografia uma memória
de rios que me atravessaram para o curso de um naufrágio
a brancura de um dia de agosto remoendo
sobre pedras brancas coisas que me foram contadas:
os prisioneiros gregos enforcados em cordas de roupa
para que os soldados alemães poupassem as suas balas
a irrespirável atmosfera de alexandria num mês de julho
descendo a avenida batida por ventos etésios
um rei miserável e a sua escolta
com armas adornadas de ouro e prata
um cavalo negro precipitando para a frente a cabeça
impetuoso como a investida de um pássaro
que se precipita desde muito alto
que lança o seu canto e fere a manhã como o golpe de um dardo
xerxes lançando correntes ao mar
ofensa aos deuses tentar a travessia do bósforo
as folhas e os frutos verdes na primavera apodrecidos no verão
o gato da cor do sangue brilhando ao sol
dois irmãos que um ao outro se matam
a golpes de espada e lança ou
só a vaga coreografia da flor que delicadamente
fenece entre as tuas mãos indiferente ao tempo que corre
versos espreitando dentro da sujidade de cinzeiros
a rápida sucessão de palavras que se precipitam
sobre o movimento do corpo enquanto música
a sudden blow: the great wings beating still
above the staggering girl her thighs caressed
by the dark webs, her nape caught in his bill,
he holds her helpless breast upon his breast
uma manhã fria eivada de sal virada para o mar
tudo o que tiveres sido como se lá estivesses estado
outros sobre a tua vida te têm vivido
ao acaso como se fosse possível
alguma vez saber em que ponto já te terá parado o coração
que âncora ou porto ou hora do dia ou da noite
te trará de volta ao centro à pulsação de cada dia
à música que vem ténue e te traz pela luz
e acerta o passo por graça e mão de algumas vozes
que incertas te cercam de esperança

Tatiana Faia

Sem comentários:

Enviar um comentário