Em que língua gritas tu, meu pesadelo,
meu fantasma? Cem vezes seguidas
Nina Simone a cantar Sinnerman.
Don't you see I need you, rock?
E querias que cantasse contigo.
Sempre cantámos canções e atingimos
depois a plenitude, o silêncio: não cantamos,
não nos tocamos, não dizemos nada
que não seja útil. A tua última frase
com sintaxe (enrolaste a palavra dentro
de uma palmeira azul) pareceu-me
feliz, dentro do género surreal-charrado.
Eu podia mandar desenhá-la a desenhadores
desempregados, pôr moldura e tudo,
em vez destas letras que, de cada vez
que se formam intuitivamente no papel,
logo lançam reflexos nos meus joelhos.
Um assobio, uma pequena linha de seiva
e os dois com falta de paciência, leva-me,
poesia, na escada do desacerto e faz
de mim um lavador de pés, um menino
moldavo a limpar vidros nos semáforos.
Ao olhares bem de frente uma cara
de apatia, podias voltar à velha história
do espelho, e dizer isso em verso coxo,
mas não era nada disso, a apatia
eras tu, não outra pessoa, não eu, não
o meu espelho. Ah, eu já não te digo
nada, já não te canto nada como dantes.
Helder Moura Pereira, Mútuo Consentimento, Assírio & Alvim, Lisboa, 2005
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