José Barata-Moura, Da Representação
à "Práxis", Editoral Caminho, 1986.
quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013
A ambiguidade – como o absurdo –
são atitudes não-radicais. São atitudes que abandonam a
radicalidade de uma pesquisa e de um compromisso vital para se
“consolarem” com a repetição da existência de uma pluralidade
contraditória de vias e de caminhos que, depois, não são
completamente explorados nem prosseguidos.
Pessoas
Por certo pensava que eu tinha a liberdade de falar ou de me calar. Ela não conseguia imaginar o silêncio que em mim reinava. Ninguém é capaz de imaginar tal silêncio.
O senhor sabe o que significa pessoa? Significa máscara. Papel. O eu verdadeiro. A linguagem, quer-me parecer, depois de tudo isto, está ligada a pelo menos um destes três estados. O facto de todos eles me terem escapado queria dizer o mesmo que o silêncio total. Não se pode anotar nada sobre ninguém. Isso explica a lacuna de três dias no meu relatório.
Quando passados uns dias me foi possível dizer SIM e NÃO, voltei a encontrar-me com pessoas.
Christa Wolf, Unter den Linden, "Auto Experimentação: Ensaio para um Relatório", Ana Maria Bernardo (trad.), Livros Cotovia, 1991.
terça-feira, 26 de fevereiro de 2013
O mítico caçador
Choram os escravos a morte do atleta. Gravaram-
-lhe a cabeça de anelado cabelo, tranquilo porte
em taça negra. Hoje, pousou-a o hermafrodita, modelada
em fluxo de fogo, tensão e harmonia
pousou-a junto da estátua de Meleagro, caçador.
Não sabe de melhor
imagem, sequer a de Apolo lykeios, de grande pénis
o esculpiram. O
túmulo estava perto. A
amazona depôs o arco, as setas
entre a terra rasa sobre o corpo morto - que foi ágil
na palestra -, e o mármore
que dá forma ao herói. O véu de cinza cobre-a por
inteiro e os passos, enquanto dança.
Os companheiros de ginásio levam consigo o cráter. Os
sentidos sabem as figuras
vermelhas que se estendem ao redor
representam a sua intimidade, em homenagem
ao vencedor - a morte roubou-o
mas no desenho da taça ainda podem festejar a
nudez; coroa de flores
o rapaz eleva sobre
o amante. Vão beber a mistura de vinhos e
sentir o aroma suave das abelhas; o perdido desejo que
foi de muitos há-de voltar por uma noite mais
de orgia - matriz da história,
vinho de mel humano sobre a fonte da história.
*Pergamonmuseum
João Miguel Fernandes Jorge, Sobre Mármore, Teatro de Vila Real, Outubro de 2010.
-lhe a cabeça de anelado cabelo, tranquilo porte
em taça negra. Hoje, pousou-a o hermafrodita, modelada
em fluxo de fogo, tensão e harmonia
pousou-a junto da estátua de Meleagro, caçador.
Não sabe de melhor
imagem, sequer a de Apolo lykeios, de grande pénis
o esculpiram. O
túmulo estava perto. A
amazona depôs o arco, as setas
entre a terra rasa sobre o corpo morto - que foi ágil
na palestra -, e o mármore
que dá forma ao herói. O véu de cinza cobre-a por
inteiro e os passos, enquanto dança.
Os companheiros de ginásio levam consigo o cráter. Os
sentidos sabem as figuras
vermelhas que se estendem ao redor
representam a sua intimidade, em homenagem
ao vencedor - a morte roubou-o
mas no desenho da taça ainda podem festejar a
nudez; coroa de flores
o rapaz eleva sobre
o amante. Vão beber a mistura de vinhos e
sentir o aroma suave das abelhas; o perdido desejo que
foi de muitos há-de voltar por uma noite mais
de orgia - matriz da história,
vinho de mel humano sobre a fonte da história.
*Pergamonmuseum
João Miguel Fernandes Jorge, Sobre Mármore, Teatro de Vila Real, Outubro de 2010.
segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013
domingo, 24 de fevereiro de 2013
Recordação
Nada é para mim mais perigoso do que recordar. Se recordo tão-somente uma circunstância da vida, essa circunstância cessa por si. Diz-se que a separação ajuda a reanimar o amor. É inteiramente verdade, mas reanima-o de um modo puramente poético. Viver em recordação é a mais perfeita vida em que é possível pensar, a recordação sacia mais fartamente do que toda a realidade, e tem uma segurança que realidade alguma possui. Uma circunstância da vida que é recordada já entrou na eternidade, e não tem mais nenhum interesse temporal.
Søren Kierkegaard, Ou-Ou, Um Fragmento de vida, Primeira parte. Elisabete M. de Sousa (trad.), Relógio D'Água Editores, 2013.
Numa rua do casco antigo de Évora
A escada esboroava-se na noite dos meus passos,
contou-me como aos dezasseis anos, mal acabara de os
fazer, pela primeira vez uma mulher se oferecera - a
saia e a blusa, o seio pleno, curva de todo o corpo em dádiva -
num andar cimeiro de uma rua do casco antigo de
Évora. A noite caía fria e pesada (era dezembro pelas
férias do natal), os botões na pressa dos dedos,
o cinto, o nó cego ao desatar um sapato.
Um cheiro intenso a perfume espanhol e a tabaco,
coisas que se não esquecem, como a extensão do mar ou
a estrada que vai de Évora a Viana.
Diante da porta arrombada da memória, o relato do
encontro nocturno (seguiram-se outros na cidade desse inverno)
surge entre papéis rasgados e figuras entre-
vistas semelhantes ao traço que restou num fragmento
de terracota, vísceras
espalhadas ao redor
pelo saque da vida demolida de uma casa.
E quando a noite cai, fria e áspera pelo dezembro do natal de
Évora, outro e outro rapaz ainda hoje sobem os degros em
ruína desse prédio da cidade velha. Uma luz oculta sobre a
cama - as mãos prendem em arremetida posse
os ferros da cabeceira que trazem, descoloridas,
as armas coroadas do reino - reflecte,
mais do que veloz prazer,
a imagem de como desenharam alguns pintores de Évora -
Frei Carlos ou Francisco Henriques - de quem não
restou nenhum esboço prévio.
João Miguel Fernandes Jorge, Sobre Mármore, Teatro de Vila Real, Outubro de 2010.
contou-me como aos dezasseis anos, mal acabara de os
fazer, pela primeira vez uma mulher se oferecera - a
saia e a blusa, o seio pleno, curva de todo o corpo em dádiva -
num andar cimeiro de uma rua do casco antigo de
Évora. A noite caía fria e pesada (era dezembro pelas
férias do natal), os botões na pressa dos dedos,
o cinto, o nó cego ao desatar um sapato.
Um cheiro intenso a perfume espanhol e a tabaco,
coisas que se não esquecem, como a extensão do mar ou
a estrada que vai de Évora a Viana.
Diante da porta arrombada da memória, o relato do
encontro nocturno (seguiram-se outros na cidade desse inverno)
surge entre papéis rasgados e figuras entre-
vistas semelhantes ao traço que restou num fragmento
de terracota, vísceras
espalhadas ao redor
pelo saque da vida demolida de uma casa.
E quando a noite cai, fria e áspera pelo dezembro do natal de
Évora, outro e outro rapaz ainda hoje sobem os degros em
ruína desse prédio da cidade velha. Uma luz oculta sobre a
cama - as mãos prendem em arremetida posse
os ferros da cabeceira que trazem, descoloridas,
as armas coroadas do reino - reflecte,
mais do que veloz prazer,
a imagem de como desenharam alguns pintores de Évora -
Frei Carlos ou Francisco Henriques - de quem não
restou nenhum esboço prévio.
João Miguel Fernandes Jorge, Sobre Mármore, Teatro de Vila Real, Outubro de 2010.
sábado, 23 de fevereiro de 2013
sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013
Kárhozat, Béla Tarr (1988)
"What a lovely colorful crowd. A party. Dance! Arms and legs, waists and shoulders working in perfect harmony. The way they speak... movements, glances that raise the dance above daily troubles. The young are so lovely! Believe me, there is nothing like finding one another, when there is music that warms the heart. Two hands clasped together, one foot senses where the other will step. And follows, no matter where the other steps. Because it believes that they'll be flying from now on. From every swing and turn. Who knows? Perhaps... it is flying. Go on, young man, before it's too late."
quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013
Aeneas knew it all
Plenty of insults we could fling at each other,
enough to sink a ship with a hundred benches!
A man's tongue is a glib and twisty thing...
plenty of words there are, all kinds at its command -
with all the room in the world for talk of rage and stray.
And the sort you use is just the sort you'll hear.
ἔστι γὰρ ἀμφοτέροισιν ὀνείδεα μυθήσασθαι
πολλὰ μάλ᾽, οὐδ᾽ ἂν νηῦς ἑκατόζυγος ἄχθος ἄροιτο.
στρεπτὴ δὲ γλῶσσ᾽ ἐστὶ βροτῶν, πολέες δ᾽ ἔνι μῦθοι
παντοῖοι, ἐπέων δὲ πολὺς νομὸς ἔνθα καὶ ἔνθα.
ὁπποῖόν κ᾽ εἴπῃσθα ἔπος, τοῖόν κ᾽ ἐπακούσαις.
Homero, Ilíada, 20. 246-250, trad. de Robert Fagles.
enough to sink a ship with a hundred benches!
A man's tongue is a glib and twisty thing...
plenty of words there are, all kinds at its command -
with all the room in the world for talk of rage and stray.
And the sort you use is just the sort you'll hear.
ἔστι γὰρ ἀμφοτέροισιν ὀνείδεα μυθήσασθαι
πολλὰ μάλ᾽, οὐδ᾽ ἂν νηῦς ἑκατόζυγος ἄχθος ἄροιτο.
στρεπτὴ δὲ γλῶσσ᾽ ἐστὶ βροτῶν, πολέες δ᾽ ἔνι μῦθοι
παντοῖοι, ἐπέων δὲ πολὺς νομὸς ἔνθα καὶ ἔνθα.
ὁπποῖόν κ᾽ εἴπῃσθα ἔπος, τοῖόν κ᾽ ἐπακούσαις.
Homero, Ilíada, 20. 246-250, trad. de Robert Fagles.
quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013
Temo a verdade.
Ignorar é amar. Toda esta terra,
Estes montes (...) não os amara tanto
Se soubera o que são, e enfim os vira
Como os não vejo. Pudesse eu sem termo
Gozar, sofrendo embora a ilusão
Sem que a quebrasse. Como são tristes
Os sonhos meus, inda que lhes pese,
Só porque sonhos são, que não a vida,
Assim serem.
*
Só a inocência e a ignorância são
Felizes, mas não o sabem. São-no ou não?
Que é ser sem no saber? Ser, como pedra,
Um lugar, nada mais.
Fernando Pessoa, Fausto, Tragédia Subjectiva (Fragmentos), Editoral Presença.
Ignorar é amar. Toda esta terra,
Estes montes (...) não os amara tanto
Se soubera o que são, e enfim os vira
Como os não vejo. Pudesse eu sem termo
Gozar, sofrendo embora a ilusão
Sem que a quebrasse. Como são tristes
Os sonhos meus, inda que lhes pese,
Só porque sonhos são, que não a vida,
Assim serem.
*
Só a inocência e a ignorância são
Felizes, mas não o sabem. São-no ou não?
Que é ser sem no saber? Ser, como pedra,
Um lugar, nada mais.
Fernando Pessoa, Fausto, Tragédia Subjectiva (Fragmentos), Editoral Presença.
segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013
Ideia do amor
Viver na intimidade de um ser estranho, não para nos aproximarmos dele, para o dar a conhecer, mas para o manter estranho, distante, e mesmo inaparente - tão inaparente que o seu nome o possa conter inteiro. E depois, mesmo no meio do mal-estar, dia após dia não ser mais que o lugar sempre aberto, a luz inesgotável na qual esse ser único, essa coisa, permanece para sempre exposta e murada.
Giorgio Agamben in Ideia da Prosa, João Barrento (trad.), Edições Cotovia, 1999.
Giorgio Agamben in Ideia da Prosa, João Barrento (trad.), Edições Cotovia, 1999.
De In Place Of
The Fence
at the border of this field is a fence
or section of fence attached at it is
to nothing but miles of invisible
fence today you wear a red skirt a red
sweater and try to square your hips against
a memory of fence and field try to
imagine or remember wet feet sucked
into new boots or was it dry it was
twenty years ago now you find
a smell of petrol in the turf cold sky
recollection at the edge of purpose
at the border of this field is a fence
or section of fence attached at it is
to nothing but miles of invisible
fence today you wear a red skirt a red
sweater and try to square your hips against
a memory of fence and field try to
imagine or remember wet feet sucked
into new boots or was it dry it was
twenty years ago now you find
a smell of petrol in the turf cold sky
recollection at the edge of purpose
Angus Sinclair em Dear World & Everyone in It: New Poetry in the UK, Nathan Hamilton (ed.), Bloodaxe Books, 2013.
domingo, 17 de fevereiro de 2013
Ossip Mandelstam, dois poemas
The Greeks gathered for war.
The breath-taking island of Salamis
that hostile hands had torn from them
lay in view of the Athenian harbour.
Now friends from another island
have come to fit out our ships.
The English have never much liked
the sweet soil that is Europe’s.
Continent of the modern Hellenes,
protect Pireus! Save the Acropolis!
Gifts from the island? Who needs
a whole forest of uninvited ships?
1916
One night I was washing in the yard,
above me a sky of jostling stars –
like salt on an axe, each beam –
the barrel near-frozen to the brim.
The gates were shut and locked;
believe me, the earth is strict.
You won’t find a principle cleaner
than the truth there is in fresh linen.
A star dissolves like salt in the barrel.
The ice-cold water blackens.
A cleaner death, saltier troubles,
and the earth is more truthful and terrible.
1921
Tradução de Alistair Noon, tirados daqui.
The breath-taking island of Salamis
that hostile hands had torn from them
lay in view of the Athenian harbour.
Now friends from another island
have come to fit out our ships.
The English have never much liked
the sweet soil that is Europe’s.
Continent of the modern Hellenes,
protect Pireus! Save the Acropolis!
Gifts from the island? Who needs
a whole forest of uninvited ships?
1916
One night I was washing in the yard,
above me a sky of jostling stars –
like salt on an axe, each beam –
the barrel near-frozen to the brim.
The gates were shut and locked;
believe me, the earth is strict.
You won’t find a principle cleaner
than the truth there is in fresh linen.
A star dissolves like salt in the barrel.
The ice-cold water blackens.
A cleaner death, saltier troubles,
and the earth is more truthful and terrible.
1921
Tradução de Alistair Noon, tirados daqui.
sábado, 16 de fevereiro de 2013
sorriso histriónico
Charlot
Numa destas últimas noites vi na televisão alguns filmes antigos de Chaplin, a saber, dois ou três episódios nas trincheiras da primeira guerra mundial e um filme mais extenso, “The Pilgrim”, que, retoma, com menos felicidade que noutros casos, o tema recorrente de um Chaplin sem culpas procurado pela polícia. Não sorri nem uma única vez. Surpreendido comigo mesmo, como se tivesse faltado a uma jura solene, dei-me ao trabalho de tentar recordar, tanto quanto me seria possível oitenta anos depois, que risos, que gargalhadas me terá feito soltar Charlot nos dois cinemas populares de Lisboa que frequentava quando tinha seis ou sete anos. Não recordei grande coisa. Os meus ídolos nessa época eram dois cómicos suecos, Pat e Patachon, que esses, sim, eram, para mim, autênticos campeões da gargalhada. Continuando a reflectir com os meus botões, sempre bons conselheiros porque em princípio não mudam de casa nem de opinião, cheguei à inesperada conclusão de que Chaplin, afinal, não é um cómico, mas um trágico. Repare-se como tudo é triste, como tudo é melancólico nos seus filmes. A própria máscara chaplinesca, toda ela em branco e negro, pele de gesso, sobrancelhas, bigode, olhos como pingos de alcatrão, é uma máscara que em nada destoaria ao lado das representações plásticas clássicas do actor trágico. E há mais. O sorriso de Chaplin não é um sorriso feliz, pelo contrário, aventuro-me a dizer, sabendo ao que me arrisco, que é tão inquietante que ficaria bem na boca de qualquer drácula. Se eu fosse mulher, fugiria de um homem que me sorrisse assim. Aqueles incisivos, demasiado grandes, demasiado regulares, demasiado brancos, assustam. São um esgar no enquadramento rígido dos lábios. Sei de antemão que pouquíssimos vão estar de acordo comigo. O caso é que, uma vez que foi decidido que Chaplin é um actor cómico, ninguém lhe olha para a cara. Creiam no que lhes digo. Olhem-no de frente sem ideias feitas, observem aquelas feições uma por uma, esqueçam por um momento a dança dos pezinhos, e digam-me depois o que viram. Chaplin levaria todos os seus filmes a chorar se pudesse.
José Saramago, retirado daqui.
sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013
humilio
e o mundo é isto, e por vezes funciona: salvar pela humilhação, já vimos, é uma metodologia possível e muito antiga. Se não te humilhares não serás salvo, eis a bondade em certos locais estranhos (...)
Gonçalo M. Tavares, Canções Mexicanas, Relógio D'Água Editores, 2011.
quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013
ser humilhado cura doenças
Sabes contar até quanto, pergunta-me um menino. Eu digo que sei contar até muitos.
Até quanto?, insiste o menino. Eu respondo que não sei.
Se não sabes até quanto, como podes dizer que é muito?
Eu começo a contar: 1, 2, 3, 4, 5, 6 e continuo; e o menino não sai de ao pé de mim; está à espera que eu acabe, que eu vá até ao fim – mas eu paro.
1657, basta? É tudo – digo, para fechar a conversa.
Não sabes contar mais – diz ele.
Sei contar mais, mas estou cansado – digo.
Não sabes contar mais, diz-me o menino; não tens força para contar mais, diz o menino e cospe-me para a cara, assim, aqui mesmo, na bela cidade do México.
Que faço?, pergunto ao bambino Mezcal Maelstrom, o meu amigo, que está ao meu lado. O menino, esse, cuspiu-me e está exactamente no mesmo sítio, a olhar para mim, a desafiar-me.
Deve ter irmãos mais velhos, amigos que te matam em dois segundos – segreda-me o meu amigo Mezcalzito na minha mais bela orelha. Eu limpo o cuspo do menino. E continuo. Estava no 1657 e se que estou ainda no México e por isso digo 1658 e continuo até o menino se cansar de me humilhar – que eu não, agora não me canso mais, estou ali até ser necessário – aprendi a contar finalmente, sem parar, até aos números grandes.
És muy fuerte, diz-me o merino, enquanto me puxa a orelha direita para baixo, obrigando o meu pescoço a dobrar-se de tal maneira que não cheguei a ter medo, não tinha tempo porque doía muito.
Que comem os meninos aqui – pergunto, já depois a sós com o meu amigo bambino. Ódio, responde ele.
Gonçalo M. Tavares, Canções Mexicanas, Relógio D'Água Editores, 2011.
quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013
Neve
Os óculos congelaram-se enquanto pedalava pela neve. Uma carrinha com andaimes parou à minha frente no semáforo à saída de Parks Road. Rapazes de calças vermelhas e casacos encerados. Esqueci-me de um livro dentro da mala, só me lembrei dele há pouco. Custou-me duas libras. É da NYRB Classics (nunca li um livro deles que fosse mau - eles publicaram Grief Lessons e An Apartment in Athens - muito agradecida). Dentro da 2Pound Bookshop o livreiro passeia-se de manga curta, exibe os biceps indistintamente às miúdas e às velinhas que entram na loja a fazer tempo para o chá no Morton's em frente, mas este passeia-se de manga curta ao abrigo do ar condicionado, não como o motorista do autocarro das 2 da manhã em Luton, cá fora a carregar as malas, como se o ar quente do autocarro o entediasse. Dentro dos limites do aeroporto os controladores aéreos a encherem de sal as pistas. É uma da manhã e o judeu sentado à minha frente, de costas para mim, lê a Torah ao filho, os dois de kippahs grandes negras, os dois vestidos de preto, o que podia não querer dizer nada do grau de ortodoxia. Mas ler a Torah ao filho (doze, treze anos?, loiro, sardento, indistintamente britânico ao contrário do pai) à uma da manhã diz. Caio no sono e volto com os murmúrios deles. Mudam do hebraico para o inglês. O livro não era Neve. Esse foi o livro de que ia à procura. Passo, acelero. António Variações (!) no iPod. Detesto fazer a rotunda no princípio de Cowley. Mais com mau tempo. Estas coisas não se repetem. Acontecem. De cada vez. Vinha comigo, o tempo todo aquela imagem dos rapazes que durante uma semana agitaram um ninho de vespas no cruzamento de um pinhal. A paciência para montar uma armadilha, para cercar devagar, lentamente, as coisas que o meu desejo escolheu. Não o meu prazer nisso. A paciência que não é o mesmo que disciplina mental, o desejo que não é o mesmo que prazer. É esta coisa pesada que é carregada por tudo, pela minha energia, pelo traço mais verdadeiro e comprometido da minha habilidade para a alegria, pela minha amargura ligada ao que recuso, pela minha consciência dos outros, pelo meu desprezo, pelo meu amor árduo, estéril, desenganado sempre pelas mesmas coisas, estavam comigo onde sempre estive, vieram comigo, continuarão sempre comigo. Como Pierre Bonnard, que pintou vezes sem conta, sem conta, numa cegueira de repetição, não a repetição que vai despindo a coisa do seu significado, mas a repetição que espessa, que afina, a mesma mulher, no mesmo quarto, entre as mesmas coisas. Eu lembro-me daquela mesa escura, de correr as persianas de tarde e de me sentar em impotência, vendo-me a partir tudo, a rasgar tudo. De devagar me acalmar, de perceber finalmente que cada um carrega o seu grito, o longo sopro em cujo fluxo todos fomos apanhados. Os rapazes agitando o ninho de vespas, correndo descalços pelo caminho. E corrijo-me lentamente pela repetição do erro. Até que um deles acaba por tropeçar. A cada passo dado em falso um milímetro de correcção. O meu corpo endurecido que não aprende por cortesia mas antes para que não o chateiem. Para que o deixem em paz. Que não aprende, que finge que aprende. Que isto se confunda com civilização é às vezes toda a obediência à lei de que sou capaz. E é-me agradável até o murmúrio de vozes que enche a atmosfera, como luzes que piscam, que repete a luz mortiça de candeeiros a petróleo, uma imagem que vem detrás, que é um modo de voltar ao lugar de onde vim. O que em mim se sentisse contente pelo grau de proporcionalidade entre pirueta & aplauso. Ou murmurando dizer que afinal isto não funciona assim. Esta máquina não funciona assim.
Dioniso, "Periegesis", vv. 707-12, 15-17
Era sem espinhas que te descrevia mais este mar,
mesmo se não vi de longe os seus caminhos, se nunca o atravessei
de barco; porque não é em barcos escuros que ganho a vida,
tão pouco era essa a profissão que tinha o meu pai, e nunca me dei
ao trabalho de ir até ao Ganges, atravessando o Mar Vermelho,
como fazem muitos, a troco de desprezar a própria vida, ...
A mim o que me move é questão de cosa mentale
inspirada por Musas, elas que podem
fazer a travessia de muito mar sem ter de fazer a viagem,
e de montanhas e do continente e do caminho dos corpos celestes...
ῥεῖα δέ τοι κἂν τήνδε καταγράψαιμι θάλασσαν,
οὐ μὲν ἰδὼν ἀπάνευθε πόρους, οὐ νηῒ περήσας·
οὐ γάρ μοι βίος ἐστὶ μελαινάων ἐπὶ νηῶν,
οὐδέ μοι ἐμπορίη πατρώϊος, οὐδ’ ἐπὶ Γάγγην
ἔρχομαι, οἷά περ ἄλλοι, Ἐρυθραίου διὰ πόντου,
ψυχῆς οὐκ ἀλέγοντες ...
ἀλλά με Μουσάων φορέει νόος, αἵτε δύνανται
νόσφιν ἀλημοσύνης πολλὴν ἅλα μετρήσασθαι
οὔρεά τ’ ἤπειρόν τε καὶ αἰθερίων ὁδὸν ἄστρων.
Tradução minha, livre.
mesmo se não vi de longe os seus caminhos, se nunca o atravessei
de barco; porque não é em barcos escuros que ganho a vida,
tão pouco era essa a profissão que tinha o meu pai, e nunca me dei
ao trabalho de ir até ao Ganges, atravessando o Mar Vermelho,
como fazem muitos, a troco de desprezar a própria vida, ...
A mim o que me move é questão de cosa mentale
inspirada por Musas, elas que podem
fazer a travessia de muito mar sem ter de fazer a viagem,
e de montanhas e do continente e do caminho dos corpos celestes...
ῥεῖα δέ τοι κἂν τήνδε καταγράψαιμι θάλασσαν,
οὐ μὲν ἰδὼν ἀπάνευθε πόρους, οὐ νηῒ περήσας·
οὐ γάρ μοι βίος ἐστὶ μελαινάων ἐπὶ νηῶν,
οὐδέ μοι ἐμπορίη πατρώϊος, οὐδ’ ἐπὶ Γάγγην
ἔρχομαι, οἷά περ ἄλλοι, Ἐρυθραίου διὰ πόντου,
ψυχῆς οὐκ ἀλέγοντες ...
ἀλλά με Μουσάων φορέει νόος, αἵτε δύνανται
νόσφιν ἀλημοσύνης πολλὴν ἅλα μετρήσασθαι
οὔρεά τ’ ἤπειρόν τε καὶ αἰθερίων ὁδὸν ἄστρων.
Tradução minha, livre.
segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013
sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013
dois quartos e uma cozinha
She asked if I would like her to sing something. I replied no, I would like her to say something. I thought she would say she had nothing to say, it would have been like her, and so was agreeably surprised when she said she had a room, most agreeably surprised, though I suspected as much. Who has not a room? Ah I hear the clamour. I have two rooms, she said. Just how many rooms do you have? I said. She said she had two rooms and a kitchen. The premises were expanding steadily, given time she would remember a bathroom. Is it two rooms I heard you say? I said. Yes, she said. Adjacent? I said. At last conversation worthy of the name. Separated by the kitchen, she said. I asked her why she had not told me before. I must have been beside myself, at this period. I did not feel easy when I was with her, but at least free to think of something else than her, of the old trusty things, and so little by little, as down steps towards a deep, of nothing. And I knew that away from her I would forfeit this freedom.
Samuel Beckett (1970). First love. In: First love and other novellas, 78. London: Penguin Modern Classics, 2000
quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013
De "Elsewhere"
... the terrible notion of living life to the full,
the slow advancement of days, all comfortless, all lost
to pleasure, the pain of that, the rack
of memory, slow music, lights coming on at dusk,
all lost, windows wide to the night-air, childrens' voices lost
to the sound of surd, to the seas' clean sweep,
myself, pitched up, you might think, from anywhere, addled, lost
as if I'd come to from a night-long dream of risk
that stationed me on this beach, as if to sleep
were to dream of the place I must wake to, dream
only of that, the tideline rubble, the pull of the waves, the scar
salt leaves on stone, the long, bright line
where the rest of the world falls away ...
David Harsent, Night, Faber & Faber, 2011
the slow advancement of days, all comfortless, all lost
to pleasure, the pain of that, the rack
of memory, slow music, lights coming on at dusk,
all lost, windows wide to the night-air, childrens' voices lost
to the sound of surd, to the seas' clean sweep,
myself, pitched up, you might think, from anywhere, addled, lost
as if I'd come to from a night-long dream of risk
that stationed me on this beach, as if to sleep
were to dream of the place I must wake to, dream
only of that, the tideline rubble, the pull of the waves, the scar
salt leaves on stone, the long, bright line
where the rest of the world falls away ...
David Harsent, Night, Faber & Faber, 2011
terça-feira, 5 de fevereiro de 2013
"House of Cards" de David Fincher, 2013
Com os primeiros episódios realizados por David Fincher, com Kevin Spacey e Robin Wright no elenco e completamente produzida e disponível para o Netflix (que este mês oferece um one month free trial, by the way), altamente recomendada. O terceiro episódio é uma pequena obra de arte sobre o poder (sujo) da retórica (e envolve a estranha combinação entre tragédia, um pêssego gigante e uma - duas - corrupta[s] autoridade[s] do sul).
segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013
Moist verdigris
As I should like to spell the theory now, the musician, for example, counting on the auditory laws, creates a structure he knows the mind will materialize in sounds of a certain kind. The musical score represents the music's form in ink and paper. The disc represents it in wiggles and rounds. The performance troubles the air with the same structures. And our mind hears. But the qualities we taste in wine, touch and feel along the thigh while loving, hear as singing, sniff from the steaming pot, or observe articulate the surface of a painting, are, in fact, relations. Furthermore, the sense of passions or of power, of depth and vibrancy, feeling and vision, we take away from any work is the result of the intermingling, balance, play and antagonism between these: it is the arrangement of blues, not any blue itself, which lets us see the mode it formulates, whether pensive melancholy or thoughtless delight, so one to whom aesthetic experience comes easily will see, as Schopenhauer suggested, sadness in things as readily as smoky violet or moist verdigris.
William Gass, On Being Blue: A Philosophical Enquiry, Nonpareil Books, 1996 (1976, 1ª edição).
On Being Blue: um daqueles livros com o qual quase perdi a paciência e no fim ainda bem que não.
está tudo ligado
Stan Getz, Focus, 1961.
Béla Bartók, Music for Strings, Percussion and Celesta, II, 1936
sábado, 2 de fevereiro de 2013
sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013
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