Os óculos congelaram-se enquanto pedalava pela neve. Uma carrinha com andaimes parou à minha frente no semáforo à saída de Parks Road. Rapazes de calças vermelhas e casacos encerados. Esqueci-me de um livro dentro da mala, só me lembrei dele há pouco. Custou-me duas libras. É da NYRB Classics (nunca li um livro deles que fosse mau - eles publicaram Grief Lessons e An Apartment in Athens - muito agradecida). Dentro da 2Pound Bookshop o livreiro passeia-se de manga curta, exibe os biceps indistintamente às miúdas e às velinhas que entram na loja a fazer tempo para o chá no Morton's em frente, mas este passeia-se de manga curta ao abrigo do ar condicionado, não como o motorista do autocarro das 2 da manhã em Luton, cá fora a carregar as malas, como se o ar quente do autocarro o entediasse. Dentro dos limites do aeroporto os controladores aéreos a encherem de sal as pistas. É uma da manhã e o judeu sentado à minha frente, de costas para mim, lê a Torah ao filho, os dois de kippahs grandes negras, os dois vestidos de preto, o que podia não querer dizer nada do grau de ortodoxia. Mas ler a Torah ao filho (doze, treze anos?, loiro, sardento, indistintamente britânico ao contrário do pai) à uma da manhã diz. Caio no sono e volto com os murmúrios deles. Mudam do hebraico para o inglês. O livro não era Neve. Esse foi o livro de que ia à procura. Passo, acelero. António Variações (!) no iPod. Detesto fazer a rotunda no princípio de Cowley. Mais com mau tempo. Estas coisas não se repetem. Acontecem. De cada vez. Vinha comigo, o tempo todo aquela imagem dos rapazes que durante uma semana agitaram um ninho de vespas no cruzamento de um pinhal. A paciência para montar uma armadilha, para cercar devagar, lentamente, as coisas que o meu desejo escolheu. Não o meu prazer nisso. A paciência que não é o mesmo que disciplina mental, o desejo que não é o mesmo que prazer. É esta coisa pesada que é carregada por tudo, pela minha energia, pelo traço mais verdadeiro e comprometido da minha habilidade para a alegria, pela minha amargura ligada ao que recuso, pela minha consciência dos outros, pelo meu desprezo, pelo meu amor árduo, estéril, desenganado sempre pelas mesmas coisas, estavam comigo onde sempre estive, vieram comigo, continuarão sempre comigo. Como Pierre Bonnard, que pintou vezes sem conta, sem conta, numa cegueira de repetição, não a repetição que vai despindo a coisa do seu significado, mas a repetição que espessa, que afina, a mesma mulher, no mesmo quarto, entre as mesmas coisas. Eu lembro-me daquela mesa escura, de correr as persianas de tarde e de me sentar em impotência, vendo-me a partir tudo, a rasgar tudo. De devagar me acalmar, de perceber finalmente que cada um carrega o seu grito, o longo sopro em cujo fluxo todos fomos apanhados. Os rapazes agitando o ninho de vespas, correndo descalços pelo caminho. E corrijo-me lentamente pela repetição do erro. Até que um deles acaba por tropeçar. A cada passo dado em falso um milímetro de correcção. O meu corpo endurecido que não aprende por cortesia mas antes para que não o chateiem. Para que o deixem em paz. Que não aprende, que finge que aprende. Que isto se confunda com civilização é às vezes toda a obediência à lei de que sou capaz. E é-me agradável até o murmúrio de vozes que enche a atmosfera, como luzes que piscam, que repete a luz mortiça de candeeiros a petróleo, uma imagem que vem detrás, que é um modo de voltar ao lugar de onde vim. O que em mim se sentisse contente pelo grau de proporcionalidade entre pirueta & aplauso. Ou murmurando dizer que afinal isto não funciona assim. Esta máquina não funciona assim.
quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013
Neve
Os óculos congelaram-se enquanto pedalava pela neve. Uma carrinha com andaimes parou à minha frente no semáforo à saída de Parks Road. Rapazes de calças vermelhas e casacos encerados. Esqueci-me de um livro dentro da mala, só me lembrei dele há pouco. Custou-me duas libras. É da NYRB Classics (nunca li um livro deles que fosse mau - eles publicaram Grief Lessons e An Apartment in Athens - muito agradecida). Dentro da 2Pound Bookshop o livreiro passeia-se de manga curta, exibe os biceps indistintamente às miúdas e às velinhas que entram na loja a fazer tempo para o chá no Morton's em frente, mas este passeia-se de manga curta ao abrigo do ar condicionado, não como o motorista do autocarro das 2 da manhã em Luton, cá fora a carregar as malas, como se o ar quente do autocarro o entediasse. Dentro dos limites do aeroporto os controladores aéreos a encherem de sal as pistas. É uma da manhã e o judeu sentado à minha frente, de costas para mim, lê a Torah ao filho, os dois de kippahs grandes negras, os dois vestidos de preto, o que podia não querer dizer nada do grau de ortodoxia. Mas ler a Torah ao filho (doze, treze anos?, loiro, sardento, indistintamente britânico ao contrário do pai) à uma da manhã diz. Caio no sono e volto com os murmúrios deles. Mudam do hebraico para o inglês. O livro não era Neve. Esse foi o livro de que ia à procura. Passo, acelero. António Variações (!) no iPod. Detesto fazer a rotunda no princípio de Cowley. Mais com mau tempo. Estas coisas não se repetem. Acontecem. De cada vez. Vinha comigo, o tempo todo aquela imagem dos rapazes que durante uma semana agitaram um ninho de vespas no cruzamento de um pinhal. A paciência para montar uma armadilha, para cercar devagar, lentamente, as coisas que o meu desejo escolheu. Não o meu prazer nisso. A paciência que não é o mesmo que disciplina mental, o desejo que não é o mesmo que prazer. É esta coisa pesada que é carregada por tudo, pela minha energia, pelo traço mais verdadeiro e comprometido da minha habilidade para a alegria, pela minha amargura ligada ao que recuso, pela minha consciência dos outros, pelo meu desprezo, pelo meu amor árduo, estéril, desenganado sempre pelas mesmas coisas, estavam comigo onde sempre estive, vieram comigo, continuarão sempre comigo. Como Pierre Bonnard, que pintou vezes sem conta, sem conta, numa cegueira de repetição, não a repetição que vai despindo a coisa do seu significado, mas a repetição que espessa, que afina, a mesma mulher, no mesmo quarto, entre as mesmas coisas. Eu lembro-me daquela mesa escura, de correr as persianas de tarde e de me sentar em impotência, vendo-me a partir tudo, a rasgar tudo. De devagar me acalmar, de perceber finalmente que cada um carrega o seu grito, o longo sopro em cujo fluxo todos fomos apanhados. Os rapazes agitando o ninho de vespas, correndo descalços pelo caminho. E corrijo-me lentamente pela repetição do erro. Até que um deles acaba por tropeçar. A cada passo dado em falso um milímetro de correcção. O meu corpo endurecido que não aprende por cortesia mas antes para que não o chateiem. Para que o deixem em paz. Que não aprende, que finge que aprende. Que isto se confunda com civilização é às vezes toda a obediência à lei de que sou capaz. E é-me agradável até o murmúrio de vozes que enche a atmosfera, como luzes que piscam, que repete a luz mortiça de candeeiros a petróleo, uma imagem que vem detrás, que é um modo de voltar ao lugar de onde vim. O que em mim se sentisse contente pelo grau de proporcionalidade entre pirueta & aplauso. Ou murmurando dizer que afinal isto não funciona assim. Esta máquina não funciona assim.
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wow , excelente texto, lembrou-me o Joyce - tenho que ir aí , a essa terra cheia de humidade e frio , tão propensa às palavras...
ResponderEliminarI am sick of night at 4o'clock in the afternoon! (meh, now at 6!)
ResponderEliminar: P
ResponderEliminar( É o motivo de queixa mais recorrente , de todos os amigos que tenho aí . Vê as coisas pelo lado positivo , estás a escrever cada vez melhor ... )