A escada esboroava-se na noite dos meus passos,
contou-me como aos dezasseis anos, mal acabara de os
fazer, pela primeira vez uma mulher se oferecera - a
saia e a blusa, o seio pleno, curva de todo o corpo em dádiva -
num andar cimeiro de uma rua do casco antigo de
Évora. A noite caía fria e pesada (era dezembro pelas
férias do natal), os botões na pressa dos dedos,
o cinto, o nó cego ao desatar um sapato.
Um cheiro intenso a perfume espanhol e a tabaco,
coisas que se não esquecem, como a extensão do mar ou
a estrada que vai de Évora a Viana.
Diante da porta arrombada da memória, o relato do
encontro nocturno (seguiram-se outros na cidade desse inverno)
surge entre papéis rasgados e figuras entre-
vistas semelhantes ao traço que restou num fragmento
de terracota, vísceras
espalhadas ao redor
pelo saque da vida demolida de uma casa.
E quando a noite cai, fria e áspera pelo dezembro do natal de
Évora, outro e outro rapaz ainda hoje sobem os degros em
ruína desse prédio da cidade velha. Uma luz oculta sobre a
cama - as mãos prendem em arremetida posse
os ferros da cabeceira que trazem, descoloridas,
as armas coroadas do reino - reflecte,
mais do que veloz prazer,
a imagem de como desenharam alguns pintores de Évora -
Frei Carlos ou Francisco Henriques - de quem não
restou nenhum esboço prévio.
João Miguel Fernandes Jorge, Sobre Mármore, Teatro de Vila Real, Outubro de 2010.
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