sábado, 19 de março de 2011

Não podes tirar uma fotografia a isto: já passou


















Ontem vi os últimos três episódios de Six Feet Under, os depois da morte de Nate. Há esta cena em que Ruth diz a Claire, this is the worst thing that could happen to anyone (a morte de um filho). Lembrei-me daquele poema de Kavafis, Deslealdade. Nesse poema, Kavafis fala da deslealdade de Apolo para com Tétis. A trama do poema é simples: o deus profetiza no casamento de Tétis com Peleu que o filho que nascer dessa união terá uma vida longínqua e que nunca será tocado pela doença. Enquanto Aquiles cresce, e a sua beleza é alarde da Tessália, a deusa recorda-se das palavras de Apolo e alegra-se. Mas um dia chegam de Tróia velhos mensageiros, trazendo a notícia de que Aquiles está morto. Tétis fica louca. Arranca cabelos, atira anéis ao chão, no meio do seu desespero pergunta, onde estava, onde estava Apolo, esse deus que diz palavras agradáveis nos banquetes. E os velhos respondem-lhe que o próprio Apolo desceu a Tróia e ajudou os troianos a matar Aquiles. E o poema acaba aqui, porque depois disto não havia mais respiração possível. Não havia como continuá-lo. Neste poema, guarda-se de verdade a imagem perfeita da deslealdade. Este era um oráculo que Apolo não podia ter dispensado a Tétis, porque ele deveria saber que não se concretizaria.
Com Ruth Fisher penso que a deslealdade é outra coisa, de outra forma. Podíamos dizer que é a vida que lhe é desleal. Ela já tinha perdido o primeiro Nathaniel, o marido, e o segundo Nathaniel (e em muitas coisas segunda versão de Nathaniel) já tinha sido poupado uma vez. Não lhe poderia ser tirado. Era um acordo tácito, que ela poderia ter pensado que a vida tinha assumido com ela. Alguma espécie de acordo. A violação deste acordo poderia querer dizer: a vida será sempre desleal connosco. Ficará para sempre em dívida para connosco porque somos efémeros.
Mas a verdade é que Apolo não mentiu a Tétis, pelo menos não tecnicamente, a doença nunca toca a Aquiles, ele morre demasiado jovem para que isso suceda, e a sua vida é de longa duração, porque a sua memória nunca perecerá (é ele próprio quem faz este acordo com o destino) porque haverá um Homero que o cante.
Mas Ruth Fisher, personagem, não é uma personagem de mitologia grega, é-nos mais próxima. É uma senhora da Califórnia em 2005, a excessiva proximidade da sua dor tira-nos o pouco distanciamento que tínhamos em relação a Aquiles. Porque Nate não é um herói mítico cuja morte fosse o nosso horizonte de expectativa em relação a ele.
Na cena em que Claire parte para Nova Iorque, ela pede à família que lhe resta que se junte para lhes tirar uma fotografia. Nate aparece-lhe como um espectro e diz-lhe qualquer coisa como: não podes fotografar isto, não podes fotografar isto porque já passou. O que ele poderia estar a dizer é: a vida é efémera, este momento que quiseste agarrar está morto. Mas o que ele lhe está a dizer é tens de te precipitar para o instante seguinte, vivê-lo o melhor que puderes. É por isso que Ruth não se mata, que não se afunda para sempre. Não é porque a dor pela morte de um filho pudesse de repente entrar nos limites do tolerável, é porque continuar a viver talvez seja conquistá-lo, a ele que se perdeu, a cada instante, em cada uma das coisas que continuam. Talvez seja por isso que Six Feet Under é tão bom. Daí a árvore que Andrei vê em Guerra em Paz.

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