sexta-feira, 11 de março de 2011

alexandria

Continua a voltar frequentemente e a tomar-me,

sensação amada continua a voltar

Konstadinos Kavafis, «Continua a voltar»

I

onde se perderam aqueles cadernos a que
teimosamente tornavas para escrever
de novo e de novo as mesmas frases
descalços pés apoiados na arcada da varanda
o sol dando-te no rosto cadernos onde
teimosamente ensaiaste uns quantos
gestos um verão inteiro atrasando-te
onde estão esses cadernos que não
chegaste a rasgar e a coser outra vez
onde com ténues fios brancos e estreitas
agulhas apenas alinhavaste frases
esses furtivamente comprados em estações
de autocarros furtivamente guardados
em gavetas interiores de armários com chave

II

rapariga de cabelo e nome vermelho
de vermelho pintando caixilhos de
janelas mãos de vermelho manchadas
ela emerge à flor da voz mas em
pontas de pés uma prudência tão
ensaiada que não teria como persuadir
outra palavra dita mergulharia no vermelho

III

aquele que conversando pôde apenas
aprender uma forma de ver esse nunca
falou contigo inteligente e cínico calculou
a projecção do próprio eco a conversa
entrou em areia pela noite alastrou
às lanternas ténues fios brancos e estreitas
femininas mãos por engano a luz feriu-te
um pouco acertando-te no rosto tu reclamado
em cor de sépia se a memória fosse um resgate
uma coisa sem fala e sem pena uma memória
calorosamente guardada e esquecida
como coisas que podemos suportar perder
porque nos foram totalmente concedidas

IV

as pequenas nostalgias como fios se prendem
em encaixes de mãos e ombros aquele
que falou contigo junto às vinhas podadas
no dia uma conversa mutilada na mesa
de outono (t. s. eliot) o cheiro de uvas mãos
vermelhas como terias tu provado esse vinho
com que timidez reclamar o que sempre
foi nosso um regresso por hábito à exígua e pobre
divisão da casa às paredes nuas solenidade
de mesa em sala vazia como corda de piano
cuja tecla certa se pressionada certa

V

tu na mesa de outono te sentaste o rigor
do corpo direito as mãos nos joelhos
pousadas como aqueles soldados
que muito tempo longe regressam
quando já ninguém os esperava
com altivez olham o que é deles
e já só podem desdenhar assim
o modo como atravessas de novo
e de novo a estreiteza de certas ruas

VI

continuarás a voltar a estes quartos
junto aos portos de alexandria como
fez kavafis nos seus poemas o encontro
e diálogo com as coisas será por fim
o cheiro de rosas nas mãos o ajeitar
da última flor no vaso onde a aprisionaste
será como nesse livro de agustina que agora
leste uma atenção ao mundo muito dada

VII

será uma pequena variação de cor
na luz do dia será esta forma de silêncio
de não precisar de falar que só nos une
àquilo de que somos muito irmãos o que
de imediato e não tão tragicamente sabemos
e sabemo-lo com a simplicidade de dizer
que sempre o soubemos como se cega
invocação corrida no vazio
disséssemos continua a voltar

Tatiana Faia

1 comentário:

  1. « como coisas que podemos suportar perder
    porque nos foram totalmente concedidas »

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