quinta-feira, 3 de março de 2011

jerusalém

Electra: No terror one can name —
no suffering of any kind, no not even
affliction sent by a god, is so terrible
that human nature can't take it on.


Eurípides, Orestes
John Peck & Frank Nisetich (trads.)


I

precisavas de uma linha de tempo que fosse
como aquelas rodas imperfeitas que meninos
conduzem em aprumos de aros de arame
por imperfeitas ruas de pedra cada oscilação
o eco de pequenos oráculos prováveis traços
de riscar o chão ecos de apostas mentais
curva de obstinado voo e consequente queda


II

curvas-te de mãos atrás das costas ajeitas no rosto
os óculos narciso curvando-se na direcção
de um espelho branco de água com uma urgência
desesperada com uma urgência com a vida nela
costurada como no quadro de waterhouse

III

a rapariga lê com um livro no colo quem
poderia dizer o que lhe diz o poema
o ar que respiramos e que como cor ou
estilhaço nos atravessa que cor nos espera
ao fim de cada dia penso mãos sobre esta
mesa negra de mármore onde me sento
para escrever outros poderiam entrar
pelos dias dizer que não te chega a tocar
minha mão direita e ela que apodrecesse
jerusalém se eu te esquecesse

IV

mas que consolo haverá na memória de uma cidade
quando já varámos todo o espaço que nos foi dado
tudo o que desejámos e o que nos restava e numa
volta de twisted plot a única coisa que entre as mãos
ainda te corre é já areia se não é cinza essa areia

V

mas na verdade a voz do outro lado do telefone
teima apenas em dizer coisas de rito estudado
tom de voz tão prático que enerva o verso
era grata la voz del agua/ a quien abrumaron
negras arenas desejaste tantas vezes perante
o eco que a resposta fosse sem gratidão

VI

o telefone por vezes é como bomba
com relógio incorporado pode explodir
a qualquer instante assim explodir
nas mãos a tua voz plena de cor
dispersando-se como noite de verão
em parque de diversões as cores
de um fogo de artifício púrpura e amarelo
e vermelho como se a elegia fosse alguém
que se despedisse acenando com um sorriso
um gesto cujo peso não nos pudesse ferir


VII

assim a phala por vezes se converte numa forma
de cabeça contra ombro e olhos fechados
como par que dançasse as pequenas oposições
dos corpos enantiao como diriam os gregos
que quer dizer eu oponho-me eu ofereço
uma pequena resistência aquela que o peso
do corpo sobre o chão permite não mais que isso

VIII

e assim fincarás os pés nas marcas das tuas próprias
pegadas fixarás o olhar nas casas vermelhas na linha
do sol que os teus dedos terão talvez afagado
também esta superstição quase pretensiosa
de que uma parte de nós fica presa fica em suspenso
no que com muita intenção tocamos mas nisto
esconde-se uma forma de noite nunca saberemos
como soam nos corações dos outros as nossas intenções

IX

as conversas no café rodeavam-te como uma luz
quando tornaste a erguer a cabeça e eu pude
finalmente ver o teu rosto isto é vê-lo com toda
a certeza com o peso da matéria que faz os corpos
embeberem-se de memória falo-te desta coisa
que esbate a solidão mesmo quando não podemos
saber que indelével marca deixam os dedos na pele
a única certeza é que nem todas as evocações são
feitas de mármore e que mesmo para essas
sempre haverá aqueles que contra o frio toque
da pedra se debatem sempre haverá aqueles

X

que sabem que sempre haverá uma música
que diga as primícias da primavera onde se prenda
a nossa impressão de familiaridade com as coisas
um rasto de vermelho contra verde na flor
que finalmente floresce a vaga evocação de
um som de uma conversa de alguém que
em sussurro falasse a memória de pouca luz
numa sala mal iluminada

XI

haverá sempre o gesto que te cante mesmo
quando não houver poesia mesmo onde e quando
chegarmos à memória de nada haverá sempre
cama onde te deites o fechar dos olhos o lento virar
do corpo uma última linha de tempo o faiscar da luz
na roda de arame a intacta promessa deste lugar aqui
e agora transferido para um pouco mais tarde
e sabes isto porque também tu chegaste
ao fim de todas as cidades e pudeste regressar


Tatiana Faia

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