sábado, 5 de março de 2011

Mimnermo

Tinha amigos que me diziam, antes de eu ler esse livro, que o Guerra e Paz era o romance perfeito. Havia nessa altura uma série de outros romances que eu achava, mesmo sem ter lido esses livros de Tolstói, que, de certeza, eram tão bons ou melhores, a começar pelo facto de a maior parte das obras em que pensava terem um só volume. Inferia que onde há mais economia, há necessariamente um domínio melhor do que se está a fazer, o que, claro, não é uma regra exacta. Uma certa impressão de pudor sempre me impediu de contradizer esses amigos, primeiro por respeito, depois porque em certos casos compreendia que, mais do que ofendê-los por discórdia desinformada, lhes infligiria uma certa mágoa. Não sei se o romance perfeito existe. Espero que não.
Ontem falávamos de personagens do Guerra e Paz. Concluí que me lembro de episódios como a morte de Pétia Rostov, a morte do pai Bolkonsky ou de coisas que me fazem rir, como, no Livro I, o episódio do urso e do guarda. A memória da maior parte destas coisas, com o passar do tempo, ecoa numa parte da consciência que só guarda uma impressão de proximidade, uma aparência de vida. Mas há dois episódios que para mim ficam isolados. A descrição do primeiro encontro entre Maria Bolkonskaia e Nikolai Rostov, numa revolta de camponeses em Lissie Górie, e a última vez que Andrei olha para Natasha. Porque há uma continuidade enternecedora nas coisas que se fecham, que se cumprem. Andrei morre, nunca casará com Natasha, não verá crescer o filho que teve, parece que a vida dele falha. Mas penso que se cumpre, porque, segundo me lembro, e lembro-me tão mal, na última vez (e há esta passionalidade muito usada de ser a última, mas tinha de ser a última, sabia-o Tolstói e nós também) em que ele a olha, essa é a única vez em que a vida é inteira, não perfeita, e nisso está a redenção, um olhar de relance em que se fica pacificado mas sem o peso por vezes humilhante e amargo da resignação, como se Andrei finalmente tivesse percebido o que teimava em escapar-lhe e tivesse percebido que isso áxion esti, como diriam os Gregos, que era digno e tinha valido a pena, o que quer que isso fosse. Além disso, pensava na altura que Andrei tem de morrer porque Andrei é Tolstói e não pode haver dois Tolstóis no mesmo romance.
A felicidade que deveria ser de Andrei desloca-se lentamente para outras personagens, desloca-se sobretudo para Nikolai e Maria. E isto prova, para lá de toda a dúvida, que a ideia para o argumento original de Guerra e Paz estava já contida naqueles versos de Mimnermo, roubados por sua vez à Ilíada, que diz assim como as folhas criadas na estação florida da primavera,/ que subitamente crescem sob raios de sol,/ assim os homens. Porque Mimnermo falava de efemeridade, falando também de continuidade.

6 comentários:

  1. Ainda hoje o Andrei me provoca arrepios. O romance é inconcebível sem a morte desta personagem e como que se cria um pequeno romance dentro daquele ingente livro - tão semelhante à Morte de Ivan Ilich -, a história de um homem que vê, em primeira instância, numa árvore (que já não recordo) o carácter tétrico e mirrado da vida, para depois a ver reverdescida, em todo o seu esplendor, como a volta que se dá na sua própria perspectiva da condição humana. A sua morte surge-nos tão natural como o ciclo de Perséfone, tal como a árvore perde as suas folhas, também aquele romance perderá Andrei, que é uma folha de coleccionador, trevo de quatro folhas (prometo não repetir mais vezes a palavra folha... folha, folha, folha, folha) que convém guardar como um daguerreótipo.
    E pelos vistos a gaiata sempre se chamava Natacha. Merda, nunca escrevi tanto na net.

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  2. Estás a ver? O Guerra e Paz tem este efeito nas pessoas, epá, também me lembrava dessa da árvore. Que estranho. É verdade, Natalia, como tinhas dito.

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