segunda-feira, 14 de março de 2011

Hoje acordei assim

Um amigo escreveu este post, sobre o preço obsceno que certas grandes imprensas universitárias cobram pelos seus livros e sobre o impacto que isso tem em nós, países mais pobres. Há, de facto, preços praticados em paperbacks que são totalmente ordinários, para não lhes chamar ofensas ao pudor. É verdade que as nossas bibliotecas universitárias têm falhas comoventes, no sentido em que muitas vezes nos chegamos à estante já de coração acelerado e com vontade de desatar a esmurrar o lugar vazio onde devia estar aquele livro de que precisávamos como de pão. Há também aqueles casos em que sucede colecções inteiras de livros desaparecerem de uma biblioteca e temporariamente ninguém saber onde eles andam ou parecer estar muito preocupado com isso.
Muitas vezes um organismo público acaba a adquirir por duas vezes um livro que já existe, o que muitas vezes representa um investimento na ordem destes valores, o que até pode parecer pouco, mas multipliquem isto por vários casos ao ano, em vários centros de investigação e para diferentes bibliotecas. Ao facto de não sermos ricos que chegue, soma-se, então, muitas vezes o facto de não sermos eficientes que chegue.
Ou de a disciplina que estamos a estudar não ter tradição na Faculdade em que a estamos a estudar, i. e., nunca nenhum professor ou investigador fez uma tese sobre aquilo ou é uma cadeira que nunca foi dada ou foi apenas marginalmente dada. A biblioteca pura e simplesmente, nesses casos, é de uma pobreza que além de franciscana fere sensibilidades. E muitas vezes não são disciplinas marginais: digamos por exemplo estudos judaicos, ou estudos judaicos em contexto helenístico, ou estudos judaicos no império romano. Mas não é preciso ir a nichos tão específicos. Digamos Ésquilo ou Homero. As nossas bibliotecas não acompanham. Claro que a falta de dinheiro é determinante. Mas outros factores também o são. Manuais tipo este, porque não existem na biblioteca de uma Faculdade de Letras? E depois há ainda este facto completamente assustador, que demonstra que o nosso problema tem uma raiz um pouco mais profunda do que aquilo que pensáramos.
Ontem copiei aqui um excerto de um livro que se chama The Fragility of Goodness: Luck and Ethics in Greek Tragedy and Philosophy. Este livro, que se tornou um clássico absoluto, vai na sua vigésima terceira edição, desde 1986, o que dá uma reimpressão por ano, mais coisa menos coisa. Em Portugal nenhuma editora investiria num manual de 544 pp. dedicado a um tema destes. E se investisse a tiragem seria qualquer coisa como trezentos exemplares, a oitenta euros o exemplar ou algo do género. Veja-se o exemplo da recente tradução de Tucídides: como divulgar os estudos clássicos se traduzimos um autor tão perene para o vender a quarenta euros? Para daqui a uns meses o estarmos a queimar ou a vendê-lo em feiras a três euros (comprei a minha edição de Lesky, uma óptima história da literatura grega, calhamaço imenso, traduzido na Gulbenkian, por 10 euros, um amigo uns anos mais tarde comprou-a por dois)?
O nosso problema, além da falta de dinheiro, é o de que não temos a tradição de estudar as nossas tradições, ou têmo-la menos que marginalmente. O resultado produzido até agora, com esta política, não me parece que tenha sido brilhante, sendo directa, somos um país atrasado e também por isto continuaremos a sê-lo. E não digo apenas nos estudos clássicos, digo em todas as outras coisas, sobretudo numa cultura de ler. Não a temos. E temos miúdos menos imaginativos, menos capazes de raciocinar abstractamente. Mas é tão cliché estar para aqui a dizer isto a esta hora da manhã que me parece abjecto. Porque batermo-nos por isto (fazer miúdos lerem poesia, lerem literatura, a Odisseia nas escolas, um ano ou dois de latim, blá, blá) já nos parece idiota. E quando chegou a este ponto, acabou.
Em muitos casos um académico dá uma conferência para três ou quatro amigos, dos quais dois nunca estarão bem certos do que ele está a falar, mas vão lá estar porque são amigos dele, dois riem-se das suas piadas porque acompanham mais ou menos, e isto é a ciência em Portugal. Há excepções, claro, aqui há uns anos houve um professor nosso que deu umas conferências na Culturgest cuja afluência nos fazia pensar que ele podia ser uma estrela de rock. Porque as pessoas que lá iam sabiam que aquelas eram conferências sobre temas clássicos mas enraízadas no coração da vida. A ciência altamente específica sobre um assunto, é claro que é indispensável, mas o meramente falar sobre as coisas, dizer porque as amamos, num país em que essas coisas não são e deviam ser estudadas, isso é o fundamental. Isso é começar.

2 comentários:

  1. sabes, às vezes penso o que poderíamos fazer a sério para contrariar esta tendência, é quando percebo que estou completamente desadequada em relação ao mundo. quod tam triste?, como diria tácito.

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