sexta-feira, 31 de maio de 2013

De hæreticis

[PEDRO]
Ao louvares a pobreza, afirmaste a bondade do sofrimento dos pobres. Este é o pecado de que nenhuma absolvição te salvará. 

[ELIAS]
Tenho ouvido com grande atenção. Se bem entendi, Pedro recusa-se a ajudar Francisco a destruir a companhia, quaisquer que sejam os meios em que Francisco estaria a pensar, não sei quais. 

[FRANCISCO]
Todos os meios.

[ELIAS]
Tu, Francisco, exemplo de mansidão, tu matarias?

[FRANCISCO]
Nunca matei.

[ELIAS]
Darias matador por ti?

[FRANCISCO]
O próprio Cristo não pôde impedir que o matassem.

[LEÃO]
Heresia.

[FRANCISCO]
São heréticas todas as palavras que aqui têm sido ditas. Perserveremos nelas, digamos outras ainda mais ousadas, talvez no fim de tudo cheguemos a uma verdade que ninguém possa negar durante o tempo da sua vida.

José Saramago. A Segunda Vida de Francisco de Assis. Caminho (1987).

Amor

A minha maneira de te amar é simples:
aperto-te contra mim
como se houvesse um pouco de justiça no meu coração
e eu ta pudesse dar com o corpo.

Quando revolvo os teus cabelos
algo de belo se forma entre as minhas mãos.

E quase não sei mais nada. Só aspiro
a estar em paz contigo e a estar em paz
com um dever desconhecido
que às vezes também pesa no meu coração.

Antonio Gamoneda, Oração Fria, João Moita (trad.), Assírio & Alvim, 2013.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

L'Italia, l'Inghilterra

L'Italia è un paese pronto a piegarsi ai peggiori governi. È un paese dove tutto funziona male, come si sa. È un paese dove regna il disordine, il cinismo, l'incompetenza, la confusione. E tuttavia, per le strade, si sente circolare l'intelligenza, come un vivido sangue.
È un'intelligenza che, evidentemente, non serve a nulla. Essa non è spesa a beneficio di alcuna istituzione che possa migliorare di un poco la condizione umana. Tuttavia scalda il cuore e lo consola, se pure si tratta d'un ingannevole, e forse insensato, conforto.
In Inghilterra l'intelligenzia si traduce nelle opere, ma se la cerchiamo attorno a noi per la strada, fra la gente che passa, non ne troviamo un solo barlume, e questo, certo stupidamente e ingiustamente, ci sembra una privazione, e ci fa ammalare di malincolia.

Natalia Ginzburg, "Elogio e Compianto dell'Inghilterra", Le Piccole Virtú, Einaudi, 2012 (primeira edição, 1962).

terça-feira, 28 de maio de 2013

On raconte aussi que Jésus, fils de Marie, et Jean, fils de Zacharie - que le salut soit sur eux - se rencontrant un jour, Jean dit à Jésus: "Que t'arrive-t-il por que tu viennes ainsi à ma rencontre en riant, si visiblement plein de confiance? - "Que t'arrive-t-il", répliqua Jésus, "que tu vie viennes à ma rencontre renfrogné, comme si tu étais désespéré?" Le Dieu Très-Haut leur dit alors secrètement ces paroles: "Celui d'entre vous deux qui m'aime le plus est celui qui me fais le plus de confiance."

Ahmad at-Tîfâshî (1184-1253), As delícias dos corações ou o que se não encontra em outro livro
(trad. do árabe por René R. Khawam)

domingo, 26 de maio de 2013

In questa

C'è una certa monotona uniformità nei destini degli uomini. Le nostre esistenze si svolgono secondo leggi antiche ed immutabili, secondo una loro cadenza uniforma ed antica. I sogni non si avverano mai e non appena li vediamo spezzati, comprendiamo a un tratto che le gioie maggiori della nostra vita sono fuori della realtà. Non appena li vediamo spezzati, ci struggiamo di nostalgia per il tempo che fervevano in noi. La nostra sorte transcorre in questa vicenda di speranze e di nostalgia.

Natalia Ginzburg, Le Piccole Virtú, "Inverno in Abruzzo", Einaudi, 2012 (Primeira edição 1962).

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Luminária, lamúria

Esta gente vagamente adestrada em punhetas mentais, talvez por ser sensível, de vez em quando sente-se na obrigação de debater a questão da arte. Metodicamente organizados em sociedades, juntam-se para o combate ao domingo à tarde e cada um deles traz os seus argumentos apontados nos moleskines. As cadeiras são confortáveis, há vinho chileno e italiano e toda esta gente compreende a questão, o problema, está comprometida com a importância da questão. Macacos amestrados definem os limites do problema da arte, do que deve e não deve ser feito, e isolam o argumento, decidem como devem ser as coisas em arte. Como num teste para a escola, olhando para as cábulas procuram a resposta certa. A sala está aquecida e lá fora faz vento e chove e eu distraio-me a pensar num texto de Natalia Ginzburg sobre não ter sapatos, ou o outro, sobre o retrato de um amigo morto. 
A punheta mental, como se sabe, nem sempre é nociva, mesmo que não leve a lado nenhum, e se te diverte é gratificante. Uma nulidade com nada para dizer é sempre uma figura interessante. Se por mais nada, porque podes contar até regredir quantas banalidades consegue ela somar num dado intervalo de tempo, podemos apostar mentalmente quantas e assim compor uma cara de cordialidade pacífica enquanto nos olhos se afunda um esgar enraivecido e nos ocorre a expressão "boi num palácio". "Boi num palácio" neste momento sou eu. As pessoas são livres de dizerem quantas parvoíces e quantas banalidades quiserem seja sobre o que for e qualquer um tem direito a uma opinião sobre qualquer coisa. 
Saio e pontapeio discretamente o caixote do lixo, o copo de papel no chão, a pedra no caminho. No tempo em que tudo é cómodo, em que toda a gente está acomodada, porque é que me escandaliza esta confusão entre arte e retórica, conduzida por gente profissional e adestrada em argumentos, que a practica com zelo, porquê de repente esta raiva. 
Pela ideia de que alguma coisa esteja para ser decidida sobre arte, mas sobretudo num tempo em que tudo é cómodo, em que toda a gente está acomodada (foi outro tipo que não eu que disse isto, não frequenta debates), é como se um método sancionasse tudo, como se qualquer coisa em arte - cinema, pintura, poesia - pudesse ser oportunisticamente explicada, conduzida a uma verdade judiciosa e ajuizadamente produzida em debates por estes imbecis informados. Como se tudo o que tivesse um método, uma fórmula, pudesse ser arte. 
Há no mundo gente bem intencionada disposta a apresentar-se como salvação da poesia em entrevistas de jornais ou gente que debate a questão da arte e lhe decide o limite e por estas duas coisas devíamos estar agradecidos. Que luminárias nos iluminem. Gente organizada que explica com método a verdade. Se tudo estiver organizado e se houver um método, qualquer macaco escreve um texto ou compõe um dos trios para piano de Schubert, basta que seja educado nisso, que lho ensinem, e todos somos, afinal, espíritos criativos. 
Mas há esta merda toda e o tempo a gastar-se depressa. Essa espécie de buraco no estômago. Lembrar-me de que tenho a Natalia Ginzburg dentro da mochila, pensar que esta merda toda, estas banalidades afinal mais ou menos bem intencionadas, só existem para que eu me lembre disso e que assim talvez se justifique que existam. Lembro-me também que de vez em quanto há gente que me merece atenção porque não me pede rigorosamente mais nada, que falamos porque nos apetece, que nos corrigimos e nos insultamos, que desconfiamos mutuamente dos motivos uns dos outros, que na próxima frase a minha simpatia acabou, deseducadamente do que estamos para aqui a dizer, cala a boca que nem sequer sabes do que estás a falar e essas coisas suspeitas e não institucionalizadas, sem lugar nem hora marcada e nenhuma arte que não seja como caminhar por uma corda entre duas pontas de um precipício me interessa. Essa é a única arte. A de que depende a tua vida e que por isso não é amestrável, não é comunicação. És tu fechado com o terror com a solidão de um pensamento. E isto não é banal como um argumento, eu posso ter sentido isto e não o sentir nunca mais ou posso nunca o sentir de todo. E sei que isto não é um argumento, que não serve para justificar nada, e há gente que pensa que nada existe sem que papagaios o digam e que talvez eu como eles para aqui a anotar isto. 
Mas o meu espírito sensível é do género de que se comisera com estas coisas e que mentalmente se sente na obrigação de de futuro evitar estas pessoas comprometidas e bem educadas que têm de falar pelo medo de não terem nada a dizer, pelo medo de não aparecerem que chegue. Porque, como todos sabemos, este é o único requisito para se ser alguém - aparecer, o que quer que isso seja. 

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Intento, sin compañía, de rehabitar una ciudad

Pienso en la solución confusa de este cielo,
la lluvia casi a punto en la mirada
débil que las muchachas me dirigen
acelerando el paso, solitarias,
en medio del acento que se escapa
como un gato pacífico
de las conversaciones.
Y también pienso en ti. Es la exigencia
de cruzar esta plaza, la tarde, Buenos Aires
con nubes y mil cables en el cielo,
cinco años después
de que lo conociéramos nosotros.

Los que vienen de fuera siguen viendo
ese resumen ancho de todas las ciudades,
ríos que de tan grandes
ya no esperan el mar para sentir la muerte,
cafés que han encerrado
la imitación nostálgica del mundo,
con mesas de billar y habitantes que viven
hablando de sus pérdidas en alto.

Mientras corre la gente a refugiarse
de la lluvia, empujándome,
pienso, desorientado,
en el dolor de este país incomprensible
y recuerdo la nube
de tus preguntas y tus profecías,
selladas con un beso,
en la Plaza de Mayo,
camino del hotel.

Testigos invisibles para un sueño,
hicimos la promesa
de regresar al cabo de los años.
Parecías entonces
eterna y escogida,
como cualquier destino inevitable,
y apuntabas el número de nuestra habitación.
Ahora,
cuando pido la llave de la mía
y el alga de la luz en el vestíbulo
es lluvia rencorosa,
vivo confusamente el desembarco
de la melancolía,
mitad por ti, mitad porque es el tiempo
agua que nos fabrica y nos deshace.

Luis García Montero, de Las Flores del Frío, 1991, in Poesía Urbana, Renacimiento, 2010 (4ª ed.)

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Señor, ahora que mi piel y la suya...

Señor,
ahora que mi piel y la suya
-después de las sábanas-
han formado un nuevo «collage» en el agua,
no es el mejor momento para hablarle,
desde luego,
pero aprovechando que estoy arriba
y usted debajo,
quisiera decirle
-casi no me atrevo con sus ojos-
que no puedo más,
que voy a pararme.

-Era el placer como una de esas muñecas rusas que se abren
y aparece otra,
y otra...-


Señor, si usted sabe...


Señor,
si usted sabe
que yo ahora estoy celosa
por lo que me ha dicho,
tenga al menos el detalle de no hacérmelo notar durante
la cena.

(Nunca en mi vida enrollé espaguetis con tanto odio.)

Almudena Guzmán, La Playa del Olvido, Altair, 1984

terça-feira, 21 de maio de 2013

La ventana me remite a su coche

La ventana me remite a su coche,
el coche al beso,
el beso a la oreja que anda siempre perdiendo pendientes,
la oreja a la boca,
la boca a las medias porque las rompe,
las medias al...
-¿Tienes un bolígrafo de más?
-Toma, y a ver si dejas de pedirme cosas,
que contigo al lado no hay quien coja un apunte,
Mari Carmen.

Almudena Guzmán, La Playa del Olvido, Altair, 1984

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Foto antigua

Y esa monicaca de chocolate hasta los kikis de rosados lacitos soy yo.
Quién lo diría.
Quién adivinaría en esos ojitos dulces un atisbo, sólo un atisbo de
amargura.
¡Si ella, la otra yo, la que fue voraz consumidora de leche condensada,
me conociera ahora!
Ahora que estoy hecha un asco, ajada, sin luz, luciérnaga exenta de
brillantes culebreos.
Qué pena.
La abstracción de mi mente ha culminado en un monolito de sal. Y ya
no quiero escribir más.

Almudena Guzmán, La playa del olvido, Altair 1984.

domingo, 19 de maio de 2013

The shore

And when I was nearing the ocean, for the first
time since we'd parted -
approaching that place where the liquid stillborn
robe pulls along pulverised boulder -
that month, each year, came back when we'd swim,
first thing, then go back to bed, the the kelp-field, our
green hair pouring into each other's green
hair of skull and crux bone. We were like
a shore, I thought - two elements touching
each other, dozing in the faith that we were
knowing each other, one of us
maybe a little too much a hunter,
the other a little too polar of affection,
polar of summer mysteriousnesss,
magnetic in reticent mourning. His first
mate was a husky pup, who died,
from the smoke, in a fire. Someone asked him,
once, to think from the point of view
of the flames, and his face relaxed, and he said,
Delicious. I hope he can come to think
of me like that. The weeks before he left,
I'd lie on him, as if not heavy,
for a minute, after the last ferocious
ends of the world, as if loneliness had come
overland to its foreshore, breaker,
shelf, trench, and then had fallen down to where
it seemed it could not be recovered from. Elements,
protect him, and those we love, wether we both
love them or not. Physics, author of our
death, stand by us. Compass, we are sinking
down through sea-purse toward eyes on stalks.
We have always been going back, since birth,
back toward not being alive. Doing it -
it - with him, I felt I shared
a dignity, an inhuman sweetness
of his sisters and brothers the iceberg calf,
the snow ant, the lighthouse rook,
the albatross, who once it breaks out of the
shell, and rises, does not set down again.

Sharon Olds, Stag's Leap, Cape Poetry, 2012.

sábado, 18 de maio de 2013

The Last Hour

Suddenly, the last hour
before he took me to the airport, he stood up,
bumping the table, and took a step
toward me, and like a figure in an early
science fiction movie he leaned
forward and down, and opened an arm,
knocking my breast, and he tried to take some
hold of me, I stood and we stumbled,
and then we stood, around our core, his
hoarse cry of awe, at the center,
at the end, of our life. Quickly, then,
the worst was over, I could comfort him,
holding his heart in place from the back
and smoothing it from the front, his own
life continuing, and what had
bound him, around his heart—and bound him
to me—now lying on and around us,
sea-water, rust, light, shards,
the little eternal curls of eros
beaten out straight.

Sharon Olds, Stag's Leap, Cape Poetry, 2012

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Le spectre de la rose





Soulève ta paupière close
Qu’effleure un songe virginal;
Je suis le spectre d’une rose
Que tu portais hier au bal.
Tu me pris encore emperlée
Des pleurs d’argent de l’arrosoir,
Et parmi la fête étoilée
Tu me promenas tout le soir.

Ô toi qui de ma mort fus cause,
Sans que tu puisses le chasser
Toute la nuit mon spectre rose
A ton chevet viendra danser.
Mais ne crains rien, je ne réclame
Ni messe, ni De Profundis;
Ce léger parfum est mon âme
Et j’arrive du paradis.

Mon destin fut digne d’envie:
Pour avoir un trépas si beau,
Plus d’un aurait donné sa vie,
Car j’ai ta gorge pour tombeau,
Et sur l’albâtre où je repose
Un poète avec un baiser
Ecrivit : Ci-gît une rose
Que tous les rois vont jalouser

(Théophile Gautier)

quarta-feira, 15 de maio de 2013

Mulher sentada

Essa mulher sentada de ribeiro de pavia
nas maçãs salientes risco ao meio e ancas arqueadas
(das pernas nada digo pois sou púdico e além disso há a mesa de permeio)
essa mulher durante tantos anos perseguida e só muito raras vezes conseguida
no mínimo desenho do pintor alentejano
finalmente perdida como tudo com a vida essa mulher amendoada
mas de cabelo louro (oxigenado?) e de dois olhos
possivelmente obtidos a partir desse lápis-lazúli
ainda não há muito visto mesmo mais que entrevisto
em dois botões de punho que o hernani me deixou ao voltar para o chile
entre compreensivos conviventes versos sobre a mesa do meu quarto
de solteiro e amiúde solitário
da casa do brasil onde em madrid envelheci um ano
esse lápis-lazúli que eu esquecera em roma numa mesa de oratório
e tão bem conhecia do antónio nobre onde me conhecera
não menos que em courelas do guerreiro ou do costa alemão
(já não sei qual dos dois) concretamente se chamava
silicato complexo de alumínio e sódio
(que forma mais complexa se utiliza - lembro-me - pensava -
pra nomear uma só pedra embora rara baça sonhadoramente azul
que já de si se chama de maneira complicada)
essa mulher sentada jamais pode conhecer
quem envelhece ao fim do corredor dos dias
e acaba de passar ao lado de umas árvores moldadas despenteadas pelo vento
sob a macia abóbada do lusco-fusco
num carro porventura expressamente encarregado
de difundir esse quarteto salvo erro número dois de haydn
entre as íntimas ervas dos velados campos
onde perdeu coisas concretas como a sua juventude
um búzio um rancho de mulheres ou o varejo da azeitona
alguns cabelos uma chave ou uma rima original
Raios a partam e depois de todos estes digressivos versos
essa mulher na mesma ali sentada e assentada
sozinha à minha espera à espera de um sentido para a vida
à espera de um marido à espera do natal

Ruy Belo, Transporte no Tempo, Moraes Editores, Lisboa, 1973.

Cidade

Lembrava-se que era uma cidade com um barulho tão espesso que se podia afogar nele.

terça-feira, 14 de maio de 2013

"but to turn your back, saying all anyway is compromise, impotence and collusion, from here on I will be no part of it, is one way you could afford it"

neste mundo de merda (na maior parte do tempo costumo pensar que não se trata de um mundo de merda), há dois tipos de merda que temos de aturar. aquela que sabemos que we had it coming (man up, neste caso, ou woman up, mais especificamente, que a culpa é minha) e aquela que não merecemos (e que nos enche de uma auto-comiseração que nos embaraça mas que não podemos evitar, é bom coçar a ferida, nadar em self-pity, a porta da casa de banho trancada, chorar na banheira, etc.). Mas quando de Sena escreveu que «nada nos salva desta porra triste», e ele não está de todo enganado sobre isto (não há literalmente nada que nos salve, mas há coisas que nos distraem e na melhor das hipóteses as distracções definem-nos perante essa porra triste), há debaixo desta frase o sublinhado do lápis, os dentes que mordem o lápis e o esforço hercúleo que num dia de merda estou disposta a fazer para me lembrar de que neste mundo há o marido, os amigos, schubert & anne carson.
e o resto 
muito honestamente
que se foda.

Estátua de rapariga que se prepara para dançar

Há uns vinte e três séculos que esta rapariga
concentra toda a vida que o mármore consente
no acto de dançar e de vencer assim
a condição mortal que intimamente a atinge
o peso que lhe pesa nesses pés com os quais pisa
a terra positiva e ciumenta como mãe
inimiga do voo de quem no acto de voar pode encontrar
maneira de evitar aquela gravidade que o sobrecarrega
Prepara a dança rapariga grega
tu nunca dançarás mas dançarás melhor
que se houvesses dançado alguma vez
No gesto com que apertas o sapato
nesse dobrar da perna até no risco do cabelo
no próprio olhar que pões em ver passar os dias
tu danças toda a dança que se tem dançado
em teatros jardins boîtes em adros de aldeias
ao longo destes séculos separando na aparência
dois seres que na verdade aqui hoje convivem
um breve instante neste corredor nesta passagem
com uma intensidade inacessível a contemporâneos
Prepara-te mulher para dançar
e por nunca dançar hás-de dançar em toda a parte
todas as danças que se têm sucedido
sobre esta terra grave e oscilante entre o dia e a noite
firme no solo inconstante no mar
através deste tempo que separa e une
e tanto mais nos une quanto mais separa
Não sei o que pensavas tu dançar
mas eu vi-te dançar ballet e música yé-yé
vi-te dançar giselle e vi-te até dançar
um único momento ao som de música moderna
há pouco tempo ainda na estalagem de saler
És toda a gente que na dança afinal tem procurado
deter o tempo eternizar o instante
Prepara a dança e põe em prepará-la
todo o cuidado de que és capaz
Só por ti não passaram vinte e tantos séculos
só tu não suportaste o dia-a-dia
não sofreste com guerras não tiveste fome
nem morreste sequer como cada pessoa
que teve nesta terra a vida e que pagou por tê-la
Prepara-te mulher e permanece e petrifica
assim serás feliz por nem teres começado
uma coisa que como uma das nossas muitas coisas
já mesmo ao começar havia terminado

Ruy Belo, Transporte no Tempo, Moraes Editores, Lisboa, 1973

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Schubert, Trio n.º2, op.100 - II Andante con moto

Em legítima defesa

Sei hoje que ninguém antes de ti
morreu profundamente para mim
Aos outros foi possível ocultá-los
na sua irredutível posição horizontal
sob a capa da terra maternal
Choramo-los imóveis e voltamos
à nossa irrequieta condição de vivos
Arrumamos os mortos e ungimo-los
são uma instituição que respeitamos
e às vezes lembramos celebramos
nos fatos que envergamos de propósito
nas lágrimas nos gestos nas gravatas
com flores e nas datas num horário
que apenas os mate o estritamente necessário
Mas decerto de acordo com um prévio plano
tu não só me mataste como destruíste
as ruas os lugares onde cruzámos
os nossos olhos feitos para ver
não tanto as coisas como o nosso próprio ser
A cidade é a mesma e no entanto
há portas que não posso atravessar
sítios que me seria doloroso outra vez visitar
onde mais viva que antes tenho medo de encontrar-te
Morreste mais que todos os meus mortos
pois esses arrumei-os festejei-os
enquanto a ti preciso de matar-te
dentro do coração continuamente
pois prossegues de pé sobre este solo
onde um por um persigo os meus fantasmas
e tu és o maior de todos eles
Não suporto que nada haja mudado
que nem sequer o mais elementar dos rituais
pelo menos marcasse em tua vida o antes e o depois
forma rudimentar de morte e afinal morte
que por não teres morrido muito mais tenhas morrido
Se todos os demais morreram de uma morte de que vivo
tu matas-me não só rua por rua
nalguma qualquer esquina a qualquer hora
como coisa por coisa dessas coisas que subsistem
vivas mais do que na vida vivas na imaginação
onde só afinal as coisas são
Ninguém morreu assim como morreste
pois se houvesses morrido tudo estava resolvido
Os outros estão mortos porque o estão
só tu morreste tanto porque não tens ressurreição
pois vives tanto em mim como em qualquer lugar
onde antes te encontravas e te posso encontrar
e ver-te vir como quem voa ao caminhar
Todos eram mortais e tu morreste e vives sempre mais

Ruy Belo, Transporte no Tempo, Moraes Editores, Lisboa, 1973

domingo, 12 de maio de 2013

Um quarto as coisas a cabeça

Mesmo que fosse mais do que este quarto a minha vida
à volta da cabeça pronta a rebentar
mesmo que fossem quatro apenas as paredes
quatro paredes são de mais para uma vida
e há palavras horríveis ó meu deus sintagma da gramaticalidade
pura pura negação da vida três palavras onde
se apoia há muito o homem que afinal só fala por falar
e eu me apoio agora em holocausto ao ritmo à vibração verbal
há dizia eu palavras pavorosas que não são precisamente o adjectivo
que substituo por razões de métrica mas são palavras como
por exemplo vida e há muito haver deixado a minha infância
coisa talvez que só por havê-la deixado alguma coisa significa
e ser não já profissional qualificado mas pessoa crescida
que não leva talvez gravata mas que tem vida privada
gulosamente devassada por vizinhos companheiros de trabalho
e tem outras pessoas e tem horas e tem ruas ó meus deus
ó forma essencialmente vocativa do meu grito grande merda esta vida
Talvez haja a janela haja árvores e céu
talvez se eu caminhar ao longo do comprido corredor
que talvez una uns com os outros estes dias
talvez se houve uma entrada ao fundo haja uma saída
Hei-de passar a merda desta vida à procura de papéis?
Sempre em mim e ao que chamam coisas há-de haver palavras
e dirão que há-de haver não só algum sentido para as coisas
mas um sentido seja ele qual for para a merda da vida
onde nasce de súbito um pequeno imenso monstro descendente de um tirano
e a mãe desse tirano descendente que podia ser tamanha como simples mãe
é mãe por profissão por pose pela posição da tão tonta cabeça
multiplicada pelas capas das estúpidas inúmeras revistas
forma mais fugitiva de fugir à fome à alegria própria ao real
cabeça digo não apenas sem ideias mas cabeça onde já nada começa
criança que sabe quantos quilos pesa que cor tinha
a primeira e menos metafórica das merdas que cagou
e o pai da criança que horrorosamente se apresenta como pai profissional
como marido inteiramente a par das regras da mulher
meu deus que merda metafórica esta merda desta vida
E ter eu de passar a vida à procura da chave
e procurar abrir e não saber da chave
e não existir nunca porta ou chave
e chave ser palavra ambígua ter sentido
e haver muitas palavras e muitíssimos sentidos
e a vida ser só uma e ser a vida
e haver mãos para as coisas gestos para as mãos
e não haver que porra uma saída
E esta cara esta cabeça susceptível de ser vista
e tudo quanto faço interpretado e comentado
e haver nomes e eu ser isto e não aquilo
e eu sentir-me em nomes encerrado
Quero dormir não ter esta doença de pensar
estender-me sob o céu o mais possível ao comprido
e que bastante terra cubra o meu comprido corpo
e eu seja terra apenas e a terra nada seja
Que eu durma ó meu nada e tu meu nada existas só
para na noite ouvir quem como eu é isso apenas que deseja

Ruy Belo, Transporte no Tempo, Moraes Editores, Lisboa, 1973

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Amanhã






































Dois poemas do novo livro da Artefacto aqui.

Via Nazionale

If I remind him of that walk along the Via Nazionale, he says he remembers it, but I know that he is lying and that he remembers nothing; and I sometimes ask myself if it was us, these two people, almost twenty years ago on the Via Nazionale, two people who conversed so politely, so urbanely, as the sun was setting; who chatted a little about everything perhaps and about nothing; two friends talking, two young intellectuals out for a walk; so young, so educated, so uninvolved, so ready to judge one another with kind impartialitty; so ready to say goodbye to one another for ever, as the sun set, at the corner of the street.

Natalie Ginzburg, He and I

quinta-feira, 9 de maio de 2013

quarta-feira, 8 de maio de 2013

restless restless

De "Breve programa para uma iniciação ao canto"

Escrever é desconcertar, perturbar e, em certa medida, agredir. Alguém se encarregará de instuticionalizar o escritor, desde os amigos, os conterrâneos, os companheiros de luta, até todas aquelas pessoas que abominou e combateu. Acabarão por lhe encontrar coerência, evolução harmoniosa, enquadramento numa tradição. Servir-se-ão delem, utilizá-lo-ão, homenageá-lo-ão. Sabem que assim o conseguirão calar, amordaçar, reduzir.
É claro que falo do poeta e não do poetrasto, do industrial e do comerciante de poemas, do promotor da venda das palavras que proferiu. Falo do homem que nunca repousou sobre o que escreveu, que recusou a servir-se a si e a servir, que constantemente se sublevou.
Falo do homem que, ombro a ombro com os oprimidos, empunhando a palavra como uma enxada ou uma arma, encontrou ou pelo menos procurou na linguagem um contorno para o silêncio que há no vento, no mar, nos campos.

Ruy Belo, Transporte no Tempo, Moraes Editores, 1973.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

o purgatório acabou

   ela estendida na cama a coçar a barriga da perna e eu a hesitar se a atirava ou não pela varanda para assistir aos nove andares da queda, ao remoinho das saias, aos molinetes dos braços, eu, após o baque no alcatrão, a tirar um espumante comemorativo da despensa, a informar o bicho

- Podes sair do reposteiro, gato, que o purgatório acabou

   finalmente dona do meu tempo, finalmente silêncio, finalmente sossego, o regresso a casa sem promessa de inferno, sem lágrimas nem gritos a aguardarem-me


António Lobo Antunes, A morte de Carlos Gardel

Na ordem do dia


domingo, 5 de maio de 2013

Espaço para uma canção

As noites desmedidas de novembro
abertas sobre a queixa rígida das árvores
inauguram o outono sobre a terra
Adeus ó meu verão impiedoso
ó limpidez da água sobre as pedras
ó inúmeros galos da manhã
ó tempestade agreste de alegria
É o país da música é a fome da noite
impossível estar só razoável rapaz
meu príncipe da própria juventude
Nos cabelos de vento do mar morto do destino
fundo antigo de água conchas e areias
no centro solitário deste solo
ante a solenidade sensual do sono
eu olho os paralelipípedos do nada
não me detenho nos umbrais das trevas
caminho numa mesma direcção
Onde o cheiro da esteva sobre a vila
o trigo para o campo do olhar
as estrelas abertas pelo céu?
Ponho os pés sobre as folhas no asfalto
espero por dezembro mês para morrer
evoco a luz discreta das doenças de outrora
Aqui os cisnes são da cor da cinza
e o vento devasta o país dos pauis
quando perto do chão a última cigarra
anuncia a definitiva solidão
Que é momentos puros de outra vida
da luminosa luz como ferro em fusão
do silêncio como a nossa melhor obra?
Eu te saúdo outono punitivo
sinal desse silêncio que me não permite
desistir de cantar enquanto vivo
Que o vento a névoa a folha e sobretudo o chão
caibam dentro do espaço da minha canção

Ruy Belo, Transporte no Tempo, Moraes Editores, 1973

"Ikiru" de Akira Kurosawa, 1952


sábado, 4 de maio de 2013

The Arrival, Shaun Tan


Eu ia escrever que ler, ver, este livro a um sábado de manhã é como voltar a ter sete ou oito anos, mas The Arrival  é tão mais que isso.

sexta-feira, 3 de maio de 2013

     e no entanto as trevas acumulavam-se na sala a partir da praia lá em baixo (o nosso andar fica quase todo o tempo muito acima do sol), as sombras das gaivotas deslocavam-se no tecto, devorando a lâmpada na trança do fio como uma lágrima inflamada e eu aqui, com medo da noite, sozinha à tua espera, com medo do rumoroso silêncio sem arbustos que a noite traz consigo, atenta ao assobio do elevador, ao som da chave na porta, à tua voz

António Lobo Antunes, A morte de Carlos Gardel

What to leave behind

Go on, move, go and embrace the waves and the air
and lift with your eyelashes lightning and clouds.
Let them shatter
our mirror then, and the vessel of years.
And leave for us behind you -
No, no, leave nothing behind
except some sorrow and some mud
and the blood dried up in veins.

Ah, go on, move. No, wait, you're
not leaving, are you?
If so leave for us behind you
your eyes, your tawny corpse, your clothes,
a poem for the strange,
the world borne of longing
holding in its eyelashes
your sky.

Adonis, Selected Poems (de Songs of Mihyar of Damascus, 1961), Khaled Mattawa (trad.), Yale/Margelios, 2010.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

The fall

I live between fire and plague
with my language, with these mute worlds.
I live in an apple orchard and a sky,
in the first happiness and the drollness
of life with Eve,
master of those cursed threes,
master of fruit.

I live between clouds and sparks
in a stone that grows, in a book
that knows secrets, and knows the fall.

Adonis, Selected Poems (de Songs of Mihyar of Damascus, 1961), Khaled Mattawa (trad.), Yale/Margelios, 2010.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Not a star

Not a star, not a prophet's inspiration
not a pious face worshiping the moon,
here he comes like a pagan spear
invading the land of alphabets
bleeding, raising his hemorrhage to the sun.
Here he comes wearing the stone's nakedness
thrusting his prayers into caves.

Here he comes
embracing the weightless earth.

Adonis, Selected Poems (de Songs of Mihyar of Damascus, 1961), Khaled Mattawa (trad.), Yale/Margelios, 2010.