sexta-feira, 24 de maio de 2013

Luminária, lamúria

Esta gente vagamente adestrada em punhetas mentais, talvez por ser sensível, de vez em quando sente-se na obrigação de debater a questão da arte. Metodicamente organizados em sociedades, juntam-se para o combate ao domingo à tarde e cada um deles traz os seus argumentos apontados nos moleskines. As cadeiras são confortáveis, há vinho chileno e italiano e toda esta gente compreende a questão, o problema, está comprometida com a importância da questão. Macacos amestrados definem os limites do problema da arte, do que deve e não deve ser feito, e isolam o argumento, decidem como devem ser as coisas em arte. Como num teste para a escola, olhando para as cábulas procuram a resposta certa. A sala está aquecida e lá fora faz vento e chove e eu distraio-me a pensar num texto de Natalia Ginzburg sobre não ter sapatos, ou o outro, sobre o retrato de um amigo morto. 
A punheta mental, como se sabe, nem sempre é nociva, mesmo que não leve a lado nenhum, e se te diverte é gratificante. Uma nulidade com nada para dizer é sempre uma figura interessante. Se por mais nada, porque podes contar até regredir quantas banalidades consegue ela somar num dado intervalo de tempo, podemos apostar mentalmente quantas e assim compor uma cara de cordialidade pacífica enquanto nos olhos se afunda um esgar enraivecido e nos ocorre a expressão "boi num palácio". "Boi num palácio" neste momento sou eu. As pessoas são livres de dizerem quantas parvoíces e quantas banalidades quiserem seja sobre o que for e qualquer um tem direito a uma opinião sobre qualquer coisa. 
Saio e pontapeio discretamente o caixote do lixo, o copo de papel no chão, a pedra no caminho. No tempo em que tudo é cómodo, em que toda a gente está acomodada, porque é que me escandaliza esta confusão entre arte e retórica, conduzida por gente profissional e adestrada em argumentos, que a practica com zelo, porquê de repente esta raiva. 
Pela ideia de que alguma coisa esteja para ser decidida sobre arte, mas sobretudo num tempo em que tudo é cómodo, em que toda a gente está acomodada (foi outro tipo que não eu que disse isto, não frequenta debates), é como se um método sancionasse tudo, como se qualquer coisa em arte - cinema, pintura, poesia - pudesse ser oportunisticamente explicada, conduzida a uma verdade judiciosa e ajuizadamente produzida em debates por estes imbecis informados. Como se tudo o que tivesse um método, uma fórmula, pudesse ser arte. 
Há no mundo gente bem intencionada disposta a apresentar-se como salvação da poesia em entrevistas de jornais ou gente que debate a questão da arte e lhe decide o limite e por estas duas coisas devíamos estar agradecidos. Que luminárias nos iluminem. Gente organizada que explica com método a verdade. Se tudo estiver organizado e se houver um método, qualquer macaco escreve um texto ou compõe um dos trios para piano de Schubert, basta que seja educado nisso, que lho ensinem, e todos somos, afinal, espíritos criativos. 
Mas há esta merda toda e o tempo a gastar-se depressa. Essa espécie de buraco no estômago. Lembrar-me de que tenho a Natalia Ginzburg dentro da mochila, pensar que esta merda toda, estas banalidades afinal mais ou menos bem intencionadas, só existem para que eu me lembre disso e que assim talvez se justifique que existam. Lembro-me também que de vez em quanto há gente que me merece atenção porque não me pede rigorosamente mais nada, que falamos porque nos apetece, que nos corrigimos e nos insultamos, que desconfiamos mutuamente dos motivos uns dos outros, que na próxima frase a minha simpatia acabou, deseducadamente do que estamos para aqui a dizer, cala a boca que nem sequer sabes do que estás a falar e essas coisas suspeitas e não institucionalizadas, sem lugar nem hora marcada e nenhuma arte que não seja como caminhar por uma corda entre duas pontas de um precipício me interessa. Essa é a única arte. A de que depende a tua vida e que por isso não é amestrável, não é comunicação. És tu fechado com o terror com a solidão de um pensamento. E isto não é banal como um argumento, eu posso ter sentido isto e não o sentir nunca mais ou posso nunca o sentir de todo. E sei que isto não é um argumento, que não serve para justificar nada, e há gente que pensa que nada existe sem que papagaios o digam e que talvez eu como eles para aqui a anotar isto. 
Mas o meu espírito sensível é do género de que se comisera com estas coisas e que mentalmente se sente na obrigação de de futuro evitar estas pessoas comprometidas e bem educadas que têm de falar pelo medo de não terem nada a dizer, pelo medo de não aparecerem que chegue. Porque, como todos sabemos, este é o único requisito para se ser alguém - aparecer, o que quer que isso seja. 

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