domingo, 11 de dezembro de 2011

Cajón Desastre

Eres tú, en la sastrería familiar

La elegancia de Sebastián va y viene
de un lado a otro, ladeando el cuerpo
según dicta el dolor de su cojera,
mientras su hija atiende los mandados
apremiantes de los consumidores.

Ves cajas de botones, alfileres,
bobinas de hilo lloviendo su color
a las prendas que cosen las mujeres
y a tu abuelo tomando las medidas
a una muchacha muerta que no supo
que la vida se mide como un traje.

De haber nacido entonces
le hubieras conocido, no sabrías
que él debía ser el próximo cadáver
con el pie grangrenado de un balazo
que le rebotó en una barricada
cuando la guerra había terminado.

Pero no es así y ahora le estás viendo
con su metro amarillo sobre el cuello
tomando las medidas muy despacio
mientras fuma con gesto reflexivo,
como si la muchacha le hubiera susurrado
que la vida es precisamente eso:
querer calcular sólo con un metro
la anchura inabarcable del desastre.

Carlos Contreras Elvira, El Eco Anticipado, Pre-Textos, Poesía, 2010

Entretanto, na Colónia Penal

O princípio de acordo com o qual estatuo é o seguinte: a culpa está sempre acima de qualquer dúvida. Outros tribunais podem não seguir este princípio, pois são constituídos por vários juízes e também têm instâncias superiores. Aqui não é o caso ou pelo menos não era na vigência do antigo Comandante. De facto, o novo já tentou imiscuir-se na minha jurisdição, mas, até agora, tenho conseguido repeli-lo e continuarei a consegui-lo. - O senhor queria que se esclarecesse este caso; é tão simples como qualquer outro. Um capitão denunciou hoje de manhã que este homem, que está às ordens dele como ordenança e que dorme diante da sua porta, adormecera durante o serviço. É seu dever levantar-se de hora a hora e fazer continência diante da porta do capitão. Certamente que não é um dever difícil e é necessário, pois ele tem de se manter apto tanto para vigiar como para servir. Na última noite, o capitão quis verificar se a ordenança estava a cumprir o seu dever. Abriu a porta às duas horas em ponto e encontrou-o enroscado a dormir. Foi buscar o chicote e fustigou-o no rosto. Ora, em vez de se levantar e pedir desculpas, o homem agarrou o seu superior pelas pernas, sacudiu-o e gritou: «Deita fora o chicote, senão devoro-te». - É esta a situação. O capitão veio ter comigo há uma hora, eu registei as suas declarações e, imediatamente a seguir, a sentença. Depois mandei acorrentar o homem. Tudo isto foi muito fácil. Se o primeiro o tivesse mandado comparecer e o tivesse interrogado, então isso geraria uma enorme confusão. Ele teria mentido, se me fosse possível refutar as mentiras, tê-las-ia substituído por outras, e por aí fora. Mas agora tenho-as comigo e não as largo mais. - Está tudo esclarecido? Mas o tempo passa depressa, a execução já devia ter começado e eu ainda não acabei a explicação do aparelho.


Franz Kafka, Os Contos, Assírio & Alvim, Lisboa, 2004.

sábado, 10 de dezembro de 2011

O ombro do André em Santiago

michael ventris

recuperas-lhe o olhar vivo
as mãos longas
sobretudo o olhar vivo
projetado
acima da linha da própria altura
rápido a entender as coisas
tinha o vício
de puzzles de quebra-cabeças
da decifração de sinais

um desses homens metódicos
por natureza
que cedo intui que nada
escapa ao caos
nem mesmo o tempo
breve dos obstáculos
que intrometemos
entre nós e as coisas

o tempo de um intervalo
na respiração
de um metrónomo

como o nilo que sobe
porque o mar
o cerca
porque os ventos de sudoeste
correm contra corrente
porque obstáculos o vedam

pensando nele
demoras-te um pouco
no problema do indecifrável
atravessas o longo campo devastado
da imaginação
o desdém
a sua forma lenta de pousio

uma coisa de fome
com garras e que grita
que imita a letargia do entardecer
invadindo tudo
colando-se ao voo de aves migratórias
a este convés de um velho navio sujo

e que te devolve finalmente ao real
puxando-te a partir
da mão que segura a caneta
e vai pousar sobre o estrépito intermitente
de uma dessas tempestades
sobre o mar
numa praia escura do norte

por mais nada que não
essa secreta medida
anterior
ancestral
a que lucrécio
na sua prudência
sábia de matemático
chamou
a grandeza suave do mar

não viveremos sem isto
suave mari magno
ou só podíamos ter vivido
sem isto se fôssemos
anteriores às imagens
se estivéssemos fora delas
se pudéssemos falar sem elas

não como ele
silencioso diante dos sinais
paciente
cuidadoso
medindo a sombra
sob o sentido
diante dessas pequenas
tábuas de argila
que durante anos
permaneceram indecifráveis

a mão segurando a caneta
devolve-nos ao sentido devido
confessamos
que esperávamos
por poemas épicos
cartas de amor
revelações escandalosas
dessa idade longínqua

a mulher do rei
traindo-o
com um qualquer cortesão
o embaixador
que vendendo ao inimigo
por uma medida de ouro
o plano dos pontos
fracos da muralha
vendeu o seu rei

ele demonstrou
que se tratava apenas
de uma imensa contabilidade
de palácio
escrupulosamente apontada
por gerações de amanuenses
mais ou menos
dedicados ou desajeitados

todo o sentido
que havia a extrair
de um incêndio
que durou séculos

a relação do número
de homens e dos seus cavalos
do seu trigo e do número
de remadores nos seus navios

michael morreu
num acidente
demasiado jovem

uma música
distante
imprecisa
tamborilando nas portas

john escreveu-lhe discretamente
talvez um pouco mais do que uma elegia

a adequação das palavras às circunstâncias

Tatiana Faia

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Kafka

Se o livro que estamos a ler não nos desperta, como se fosse um soco na cabeça, então porque estamos a lê-lo? Para que nos faça felizes? Meu Deus, também seríamos felizes se não tivéssemos livros e os livros que nos fazem felizes também podíamos ser nós a escrevê-los, se fosse preciso. O que devemos ler são esses livros que se abatem sobre nós como uma desgraça, que nos afligem profundamente, como a morte de alguém que amamos mais do que a nós próprios, como o suicídio.

Kafka, citado por Steiner, in «A nossa pátria, o texto», Paixão Intacta, Margarida Periquito e Victor Antunes (trads.), Relógio d'Água, 2003.

Pinguins

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Eneias em Timor

     Por questões práticas e políticas, não podia, de início, passar a Alor os testamentos de Ruy Cinatti - e a angústia deste ao constatar, depois da Segunda Guerra Mundial, a erosão rápida das artes e ofícios e de motivos tradicionais em Timor. Nem sequer dispunha dos livros na minha biblioteca. Os livros em português e o uso da língua eram anátema no tempo indonésio. Li Cinatti em biblioteca privada e em segredo, onde ninguém podia incomodar-me: em casa do governador Abílio Osório Soares. Não estou a inventar. A meu pedido, e parece que por recomendação do pai de Alor, o governador Abílio autorizou o rapaz a consultar «o que quisesse, quando quisesse», na sua biblioteca lusófona, que não era pequena. Penso que Alor aproveitou as leituras que fez, porque, a caminho de Baguia, disse-me
     Você é uma quimera, Pak Eneias,
     Quimera, eu?
     Eneias morreu por Matarufa e Matarufa não existe, geograficamente, politicamente, historicamente. Matarufa é uma ideia sem sítio, ou, se existe, ainda não emergiu das águas no início das coisas, pelo umbigo da mãe do mundo, como é que vocês dizem...


Pedro Rosa Mendes, Peregrinação de Enmanuel Jhesus

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

"Seppuku" de Masaki Kobayashi, 1962

Wheatear

Poem beginning with a Line of J. M. Synge

Brown lark beside the sun
Supervising Carrigskeewaun
In late May, marsh marigolds
And yellow flags, trout at the low
Bridge hesitating, even
The ravens' ramshackle nest -
Applaud yourself, applaud me
As I find inside the cottage
A wheatear from Africa
Banging against the windowpane
And hold in my hands her creamy -
Buff underparts and white rump
And carry her to the door
And she joins you beside the sun
Before skimming across the dunes
To mimic in a rabbit hole
Among silverweed and speedwell
My panic, my breathlessness

Michael Longley, Snow Water, Cape Poetry, 2004

domingo, 4 de dezembro de 2011

Para todos


Nestes 10's está a faltar gravemente uma Kate Bush.

An October Sun

in memory of Michael Hartnett

Something inconsolable in you looks me in the eye
An October sun flashing off the rainy camber.
And something ironical too, as though we could
Warm our hand at turf stacks along the road.

Good poems are as comfortlessly constructed,
Each sod handled how many times. Michael, your
Poems endure the downpour like the skylark's
Chilly hallelujah, the robin's autumn song.

Michael Longley, Snow Water, Cape Poetry, 2004

5 a 7 de Dezembro

Um colóquio que revisita temas clássicos na literatura portuguesa, da Idade Média aos dias de hoje. O programa está aqui. Eu e o André lá estaremos, ele falará de literatura política da Restauração, eu de Agustina Bessa Luís, Eurípides e mais não sei quê.

Vontade de ter 16 de novo

sábado, 3 de dezembro de 2011
























O indivíduo na fotografia é Jack Kerouac, no ano de 1942. A fotografia pertence ao arquivo da Reserva Naval americana. Olhos melancólicos, orelhas grandes.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Soldados de infantaria



















«A sua grande sombra ainda a arder»: Homero falando de Ajax, rancoroso, no Inferno. Charles Péguy era de estatura franzina, no entanto era extraordinariamente robusto para as longas marchas e para o manejo das armas. Tal como Ajax, fizera da sua existência um duelo mano a mano: contra o compromisso, contra o brilho oleoso do discurso político, da manipulação fiscal, contra o oportunismo das relações públicas e privadas, contra mundum. Até ao mais alto grau da aparente destruição mental (próximo do fim, não havia praticamente nenhum aliado, nenhum apoiante, nenhum amigo com quem Péguy não tivesse cortado relações e que não tivesse despachado para o limbo da desonra mundana). Como Sócrates, outro agitador, Ajax e Péguy não passaram de fantassins, soldados de infantaria, até ao âmago, com um sentido exacto do chão amargo que pisavam e do peso das armas que levavam às costas. Ambos eram mestres da ira.

George Steiner in «Tamborilando nas Portas - Péguy», Paixão Intacta, Margarida Periquito e Victor Antunes (trads.), Relógio d'Água, 2003.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

"A Dangerous Method" de David Cronenberg, 2011























Vigo Mortensen, sem dúvida um dos melhores actores deste tempo.

Embora eu continue sem perceber porque é que em Espanha não se comemora também este dia

Excerpto de uma canção anónyma, composta em Coimbra, em Janeiro de 1641. Actualizei a orthographia para não chocar os adeptos da inmutabilidade da escripta. Mantive, no entanto, a graphia que pode denunciar uma realização phonética differente da actual.

[...]
E tu ó Lusitâna pátria amada,
se qual Cassiopea de fermosa
contra o Céu conspirada te atreveste,
tua Lisboa, Andrómeda presada,
se a chegaste a olhar tão lastimosa
que presa ao horrível monstro ofreceste:
o Perseu que tiveste
e a quem Minerva segue,
pera que a liberdade lhe não negue,
tal amor nele vejo,
que vem voando em asas de desejo
e, qual ladrão de Europa, em chuva de ouro
rica te deixa só com seu tesouro.
[...]

Resurgam

'I am very happy, Jane; and when you hear that I am dead, you must be sure and not grieve about. We all must die one day, and the illness which is removing me is not painful; it is gentle and gradual: my mind is at rest. I leave no one to regret me much: I have only a father; and he is lately married, and will not miss me. By dying young, I shall escape great sufferings. I had not qualities or talents to make my way very well in the world; I should have been continually at falt.'

Charlotte Brontë. Jane Eyre. New York: W.W. Norton & Company, Inc. 2001. p. 69.