Numa das cenas da Electra (de Eurípides), Orestes, pouco antes de ser reconhecido, diz ao antigo tutor do seu pai: «porque estudas o meu rosto como uma moeda de prata?». Na cena imediatamente anterior, Electra é tentada pelo camponês a quem fora confiada a reconhecer uma semelhança entre ela e o irmão em três objectos diferentes: a madeixa de cabelo que instantes antes fora depositada por um piedoso anónimo no túmulo de Agamémnon; no rasto de pegadas aí deixado; em qualquer peça de roupa que ela lhe pudesse ter dado quando ambos eram ainda crianças. Electra não encontra em nada disto semelhança rigorosamente nenhuma: o cabelo das mulheres cresce de modo diferente do dos homens; os pés dos homens são maiores; quando ela e o irmão se separaram eram tão jovens que nenhuma roupa que pudessem ter trocado lhe serviria agora.
Na procura de um sentido para o sinal de uma presença, Electra não vê nada e, sobretudo, não alimenta esperança nenhuma. É o ancião, que estuda o rosto de Orestes como se fosse «uma moeda de prata», que o há-de reconhecer, por meio de uma cicatriz no rosto, ferida feita em criança, numa qualquer brincadeira com Electra.
Penso que a cicatriz, assunto que pende entre os dois irmãos, tem um sentido duplo: ao mesmo tempo remete para proximidade entre ambos que existia já quando eram crianças e que fora interrompida (como uma ferida que se abre) e ao mesmo tempo é a marca quase invisível que torna Orestes inconfundível para quem o conhecesse. Os outros sinais que o acompanham, que o pudessem unir a Electra, tamanho dos pés, cabelo, roupa, são transitórios, contingentes. Orestes não poderia ser reconhecido em Argos por outra coisa que não uma marca na pele, um corte outrora feito na carne. E nisto penso que há uma semelhança, vaga, muito remota, com a forma como Ulisses é reconhecido em sua própria casa (a cicatriz no joelho, a este propósito cf. Erich Auerbach: «A cicatriz de Ulisses»). Uma forma perfeita de dizer que muito poucas coisas são de facto essenciais para que em tua casa te reconheçam. Por isso a Electra de Eurípides é este objecto ambíguo, oscilando entre o terrível (o acto por que/ para que estes dois irmãos se juntam de novo) e o terno (o amor que os une: cf. os versos em que se despedem um do outro), é, em última análise, um poema perfeitamente escrito na linha divisória entre a noite e o dia.
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