sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Argos

Tive em tempos um conto preferido. Era aquele de Borges: «A cidade dos imortais». Plotline: um Romano, ao fim de muito tempo perdido em buscas, chega a uma cidade que é povoada por imortais, lá, um imortal segue-o para toda a  parte. Ligeiramente incomodado pela presença, sempre silenciosa, o homem dá-lhe o nome de Argos, como o cão de Ulisses na Odisseia. Um dia, já não me lembro porquê, Argos resolve fugir. O Romano persegue-o, gritando: «Argos, Argos, Argos, volta.» Ao que o imortal responde qualquer coisa como: «Raios, homem, porque me chamas Argos? Foi há tanto tempo já que escrevi a Odisseia
A princípio, gostava deste conto por causa da adrelina da revelação: Argos é Homero e é como se o Romano fosse trespassado por aquela revelação. Há uns tempos tentei, nem sei porquê, recordar-me de todo o argumento do conto. Mas a única coisa que me ficara tinha sido só isto, esta frase final. Mas agora já não a vejo só do ponto de vista do espanto, do espectacular, ou seja, do ponto de vista do Romano. Agora posso pensar o desencanto de Argos. Naquele momento em que ele se vira para trás e diz: «Porque me chamas Argos? Foi há tanto tempo já escrevi a Odisseia.» é como se dissesse que até essa tarefa, a do poema, se perde para sempre no tempo, ou para quem a empreendeu, de nada vale passado um tempo. A Odisseia é uma vaga e cinzenta memória para um homem de mãos cinzentas que acaba a ser chamado Argos quando em tempos se chamou Homero. E tal é o tempo. Mas permanece para o outro o trespasse dessa revelação. O que me faz pensar em outra coisa, numa conferência dada em tempos por Borges e que ficou compilada no livro Este Ofício de Poeta, em que ele fala da imortalidade do canto, porque pensa que a ficção existirá sempre e prevê que, ainda que morra o romance, o conto continue a existir, de forma análoga aos cantares dos aedos na Grécia. E tudo isto me lembrou Leonard Cohen e uma entrevista dada à CBS (salvo erro em 1964), em que ele dizia que não lhe importava nada saber se o que estava a escrever ia durar ou não, se ia ser aclamado ou não, deixando implícito que precisava apenas de o fazer. A dissociação é afinal a mesma do Argos de Borges: «quanto tempo? muito. inúmero. podemos apenas vivê-lo, não ver para além dele.»

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