quinta-feira, 21 de junho de 2012

O mal da poesia, Catarina

O poeta tem o direito de dever o que lhe apetecer, com quem lhe apetecer, quando lhe apetecer, sem que alguém devesse pensar poder policiá-lo por isso, mas não temos tido essa sorte, ou talvez as barreiras estejam só na nossa cabeça e por isso valham muito pouco, são afinal ultrapassáveis (é dar-lhes uns pontapés). Premissas do género de «o poeta deve» deviam aplicar-se só em caso de saldo negativo na conta do banco do mencionado poeta. O poeta deve o que deve àquilo que ele sabe que deve fazer e, nesse sentido, «faz o que deves aconteça o que acontecer» é a disciplina do poeta. Para isso tens de ter uma consciência. A sinceridade poética no seu sentido mais estreito é uma grande treta (ainda hei-de ouvir quem diga «era um bom poeta, porque era um gajo muito sincero», como se não houvesse valor nenhum naquilo que temos de agarrar às vezes com um esforço da nossa inteligência, cobarde é querer dizer que há errado e certo para uma coisa que não tem uma fórmula, um poema é uma arte de caminhar sobre o abismo, hoje acredito mesmo que os melhores poemas são isto, coisas que te ensinam a respirar, que alargam o horizonte em que vives, como é que pode haver um dever e um não dever para isto, caramba?). O poeta deve ser fiel à sua consciência literária (coisas não fixas, que são afinal aquilo que lhe apeteça dever), à sua ética, às coisas por que tem paixão, essa coisa indefinível que quando real (luz acesa dentro) está ligada por um fio vital a um amor à arte e a um amor ao mundo (o que quer que esse mundo seja), que é o primeiro impulso para escrever o primeiro verso, acho que é desse lugar que vem o primeiro verso. Isto pode parecer ingénuo, nostálgico. Mas aí talvez o poeta possa pensar que pôs os pés no lugar certo. Mas não se deve sentir muito contente consigo próprio por isso. Para mim, hoje, este é o modo como isto funciona.
Estou tão zangado com o mundo, disse Pamuk uma vez e tinha razão. 
O mal da poesia não existe, Catarina. O inferno somos nós. 

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