segunda-feira, 21 de maio de 2012

Elogio de Maria Teresa

Eu que às vezes encontro sem saber porquê

um simples não sei quê em estátuas retratos antigos

de límpidas mulheres desconhecidas

eu que de súbito à primeira vista me apaixono
                                                  adolescentemente
por essas mulheres mortas mas contemporâneas

de um pobre poeta português do século vinte

levadas até ele talvez por um discreto gesto

às formas e às cores impresso por um homem

que na arte encontrava a única razão de vida

abro a pasta e deparo com o teu retrato

um retrato de passe anos atrás tirado

no sítio suburbano onde primeiro vivemos
e juntos suportámos com surpresa a solidão

de sermos dois e ela só vergar os ombros onde os dias nos
                                                                                  poisavam

Conheço outros retratos teus onde também estás viva
um deles bem me lembro estava à minha espera em
                                                                     saint-malo

uma tarde ao voltar do monte saint michel

nesse verão bretão onde então procurava

justificação por mínima que fosse para a vida
numa das muitas fugas de mim próprio

que às vezes empreendo embora antecipadamente certo

de que só pela morte enfim me encontrarei comigo
com todos quantos verdadeiramente amei

alguns desconhecidos e alguns mesmo inimigos

sobretudo sedentos de justiça

de que depois somente de bem morto hei-de dispor
                                                               daquela paz
que sempre apeteci mas nunca procurei

até por não ter tempo para isso nem sequer para saber
coisas simples como saber quem sou porque ao certo só sei

que muito mais passei naquilo em que fiquei

nem que fossem os filhos ou os versos
 
que fiquei muito mais naquilo onde passei

como passos na areia no inverno ou repentinas sensações

de me sentir de súbito sensivelmente bem

encher o peito de ar sentir-me vivo

São retratos diferentes de quem foste um breve instante

e nele floriste e apenas não murchaste
por haveres ficado um pouco mais em tais fotografias

Mas há em todos eles uma graça inesperada

a surpresa da corça ou restos dessa raça

que há em ti talvez um pouco mais que nas demais
                                                                      mulheres

expressão sempre surpreendente da surpresa
mesmo até para quem te conhece tão bem como eu te
                                                                            conheço

Se nuns mais do que noutros sem excepção desponta

a madrugada que era e é esse teu riso claro

quem primeiro falou de riso claro

talvez houvesse ouvido a água quando corre sobre os
                                                       seixos de
 um ribeiro

talvez a houvesse visto branca e fresca

mas teve de inventar pra conquistar essa metáfora

quando eu que te ouvi rir não fiz mais do que ouvir

e sei que o som da água imita o teu sorriso

Talvez dentro de séculos se não fale já de ti

coisa aliás sem maior importância

que a de não ter alguém deixado o teu retrato

em qualquer dos museus esparsos pelo mundo
Eu estarei morto e pouco poderei fazer

por ti simples mulher da minha vida
Mas isso não importa importa esta manhã
este bar de milão onde olho o teu retrato

enquanto espero o meu pequeno-almoço

saboreio as cervejas em jejum tomadas

e começam de súbito a chegar aos meus ouvidos

inesperados os primeiros acordes do concerto imperador

Se um dia penso porventura te perder
mulher simples recôndita e surpreendente

sobre quem recaiu o peso do meu nome

só então saberei quanto valias verdadeiramente

Estás presente em mim como ninguém
e sabes quão terrivelmente amei e amo outras mulheres

além de ti além de minha mãe

Mas tu tens o meu nome clara rilke tu trocaste

a tua alegre vida irrequieta

no único infeliz dos teus negócios

por um poeta pobre velho e feio como eu

Contigo aprendi coisas tão simples como
a forma de convívio com o meu cabelo ralo

e a diversa cor que há nos olhos das pessoas

Só tu me acompanhaste súbitos momentos
quando tudo ruía ao meu redor

e me sentia só e no cabo do mundo

Contigo fui cruel no dia a dia

mais que mulher tu és já hoje a minha única viúva

Não posso dar-te mais do que te dou
este molhado olhar de homem que morre

e se comove ao ver-te assim presente tão subitamente

Bons-dias maria teresa até depois
preciso de tomar o meu pequeno-almoço

a cerveja era boa mas é bom comer

como come qualquer homem normal

e me poupa ao perigo de até pela idade

me converter subitamente num sentimental

Ruy Belo, Transporte no Tempo,  Editorial Presença, Lisboa, 1997.

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