Nada sei da solidão. Hypatia de Alexandria
eloquente e creio que bela apenas me ensinou
as virtudes geométricas teoremas axiomas alguns
severa como era das verdades do paganismo.
Depois Atenas. Onde a sabedoria?
Os que navegam sob um vento favorável
os que batidos pela tempestade onde para eles
as doutrinas dos que ensinaram
em Atenas não a elegância do discurso
mas a filosofia na força do pensado
na virtude da obra no exemplo do vivido. Onde?
Que possa acreditar?
Estarei morto?
Ou será o exílio?
O inverno e o verão têm o mesmo fim: a fertilidade da terra.
A coragem do navegante não existe só na tempestade
também na calma tem o seu lugar. E como é difícil este
século o quarto
o corpo habita ainda um ponto do mundo e ninguém
comanda já o silêncio ou melhor o progresso (do
cosmos ou dos godos?).
Não nos voltaremos a ver porque da solidão nada sei.
Cyrene envia-me. Aqui estou Arcadius para deixar na tua fronte
uma coroa de ouro para deixar no teu coração o sinal da filosofia.
Cyrene cidade grega venerada célebre mil vezes
no canto de antigos sábios Cyrene grande ruína.
Arcadius a tua vontade imperador
fará meu país digno da sua antiguidade
a palavra espera o país livre. Quando?
Que coisa nos aguarda senão correr para a
ruína? Eu queria o exército só composto
por romanos. O legislador não deve dar armas
senão aos que se alimentam na prática das suas leis
o mais imprudência. Quero dizer-me guerreiro
animado pela filosofia invoco aqui um deus supremo
mostrando-te Arcadius
a filosofia associada ao império.
Porque da solidão não nos voltaremos a ver.
Sem perigo nos plainos da Líbia festas e prazeres
o estudo da ciência a caça um ou outro poema
entre os gregos a memória de algum sábio Hypatia
sobre todos os gregos e egípcios Hypatia a quem chamo mãe
irmã amiga da longe Alexandria auxílio
na construção de quadros astronómicos escritos
sob o céu luminoso pelas noites de Cyrene.
Nos plainos da Líbia só se ouve o eco testemunho
da minha voz dividida pelos platónicos de Atenas
de Alexandria
adoptando a essência divina dos cristãos.
Assim vou permanecendo eu Synésius sábio rico feliz
admirado quase bispo de Ptolemaïs.
Divido o meu tempo entre o estudo e o prazer
porque não passarei de novo o mar até Atenas?
E fizeram-me de facto hoje bispo. Não nos voltaremos a ver.
Quem corre hoje na arena é feliz por certo
e quem estica o arco para lançar a flecha e
o que deixa tombar sobre as espáduas longa
cabeleira por certo bem feliz será o que é
célebre entre os rapazes entre as raparigas
pela beleza do seu rosto. Quanto a mim escuto hoje apenas
a fé de Niceia.
Não nos voltaremos a ver porque prisioneiro
das muralhas já só sei espiar os sinais do fogo
e rondar com o meu cavalo toda a surpresa do bárbaro
na máquina que fabrico a guerra continua as praças
foram tomadas pela fome pela fadiga eu que passava
as noites sem sono a espiar o curso dos astros
durmo apenas breves momentos medidos pelo som
da clepsidra (deu-ma Hypatia mesmo no inferno lembrarei
Hypatia). Caiu o culto velho caiu o culto novo.
Estamos em fuga tomados feridos vendidos como escravos
no entanto coloco diante de mim os vasos sagrados
as colunas do santuário a santa mesa e permanecerei vivo
sou um bispo casado mas um ministro de deus
por ele a minha vida
por ele nem a memória da data da minha morte
quando desaparecer sob ruínas sob ruínas.
João Miguel Fernandes Jorge, Obra poética, vol. 2 (Turvos Dizeres/Alguns círculos), Presença, Lisboa, 1987.
Este poema é deslumbrantemente culto, algo raro.
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