sexta-feira, 27 de julho de 2012

Nelly vista por Vânia

        Tinha eu acabado de me interrogar desta maneira quando vi Nelly de repente, a poucos passos de mim, na Ponte V … Estava debaixo de um lampião e não me viu. Quis logo correr para junto dela, mas contive-me: «O que estará a fazer ali?», pensei, perplexo, e, com a certeza de que já não a perderia de vista, resolvi aguardar e observá-la. Durante dez minutos ela continuou ali parada, a olhar para os transeuntes. Por fim, passando um velho bem vestido perto dela, Nelly dirigiu-se a ele; o velho, sem parar, tirou qualquer coisa do bolso e deu-lha. Nelly fez-lhe uma vénia. Sou incapaz de exprimir o que senti nesse momento, a não ser um aperto doloroso no coração, a sensação de que tinha sido coberta de vergonha e profanada aos meus olhos qualquer coisa querida que eu amava e de que cuidava com ternura; e logo me jorraram as lágrimas dos olhos.        
        Sim, chorava pela pobre Nelly, embora sentisse também uma indignação incontrolável: não era por necessidade que a miúda mendigava; não tinha sido abandonada ao seu destino; não fugira de opressores cruéis mas sim de amigos que a amavam e que a tratavam bem. Nelly parecia querer provocar ou assustar alguém com a sua conduta, parecia fanfarronar! Porém, algo de oculto amadurecia na alma dela… Sim, o velho tinha razão: ela fora ofendida e insultada, a sua ferida não sarava, e ela, propositadamente, tentava avivá-la com este secretismo, com esta desconfiança em relação a todos nós; como se estivesse a deliciar-se com a sua dor, com o egoísmo do sofrimento, se me é permitida a expressão. Este desejo de avivar a dor e de se deliciar com ela era compreensível para mim: é o prazer de muitos ofendidos e humilhados, oprimidos pelo destino e com a consciência da sua injustiça.

Fiódor Dostoiévski, Humilhados e Ofendidos, Editorial Presença, 2008.

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