Tinha eu acabado de me interrogar desta maneira quando vi Nelly de
repente, a poucos passos de mim, na Ponte V … Estava debaixo de um lampião e
não me viu. Quis logo correr para junto dela, mas contive-me: «O que estará a
fazer ali?», pensei, perplexo, e, com a certeza de que já não a perderia de
vista, resolvi aguardar e observá-la. Durante dez minutos ela continuou ali
parada, a olhar para os transeuntes. Por fim, passando um velho bem vestido
perto dela, Nelly dirigiu-se a ele; o velho, sem parar, tirou qualquer coisa do
bolso e deu-lha. Nelly fez-lhe uma vénia. Sou incapaz de exprimir o que senti
nesse momento, a não ser um aperto doloroso no coração, a sensação de que tinha
sido coberta de vergonha e profanada aos meus olhos qualquer coisa querida que
eu amava e de que cuidava com ternura; e logo me jorraram as lágrimas dos
olhos.
Sim, chorava pela pobre Nelly, embora sentisse também uma indignação incontrolável: não era por
necessidade que a miúda mendigava; não tinha sido abandonada ao seu destino;
não fugira de opressores cruéis mas sim de amigos que a amavam e que a tratavam
bem. Nelly parecia querer provocar ou assustar alguém com a sua conduta,
parecia fanfarronar! Porém, algo de oculto amadurecia na alma dela… Sim, o
velho tinha razão: ela fora ofendida e insultada, a sua ferida não sarava, e
ela, propositadamente, tentava avivá-la com este secretismo, com esta
desconfiança em relação a todos nós; como se estivesse a deliciar-se com a sua
dor, com o egoísmo do sofrimento, se
me é permitida a expressão. Este desejo de avivar a dor e de se deliciar com
ela era compreensível para mim: é o prazer de muitos ofendidos e humilhados,
oprimidos pelo destino e com a consciência da sua injustiça.
Fiódor Dostoiévski, Humilhados e Ofendidos, Editorial Presença, 2008.
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